“Ufa!”. É a única interjeição cabível após quase um mês de uma intensa mas simultaneamente revigorante bateria de desfiles internacionais. “Ahhhh”, vindo logo em sequência, é outra forte concorrente. Cansaço e lamentação: dois sentimentos que, diferentes, costumam coexistir após uma longa viagem.
Mas os dois últimos destinos ainda estão sem check no nosso mapa! Milão e Paris, possivelmente as localidades mais aguardadas entre as semanas de moda, reservam um universo de novidades e momentos memoráveis. Vamos aos principais?
Dolce & Gabbana
Numa alta onda de pretos e rendas, não adiantava apertar os olhos: aqui não tem nenhuma estampa. Das araras da principal loja-conceito, em Milão, os prints de limões e onças, azulejos e rosas, foram friamente subtraídos. Na passarela Fall 2023 da Dolce & Gabbana, o mar de prints faltou, mas não fez falta.
A culpa da súbita mudança poderia, a olho nu, ser atribuída à collab da dupla com Kim Kardashian — mas Domenico e Stefano garantem que o buraco é mais embaixo.
Exaustos dos excessos que guiaram a moda do pós-pandemia, decidiram retornar às verdadeiras raízes da grife: a sensualidade crua da mulher somada à boa e bem cortada alfaiataria.
Femme Fatale: divertida mulher italiana abre espaço à Bond Girl sonhada por Domenico e Stefano
O catwalk então se preencheu com a mais elevada interpretação de lounge wear: transparente, ‘exibida’. Pontos de cor foram salpicados com ponderação, no bloco de produções vermelhas, que fechou a apresentação, e nos tímidos ‘sustos’ de dourado, um souvenir da era de opulência barroca da grife.
É quase desconfortável, no melhor dos sentidos, assistir a essa ruptura. Por anos a fio, Dolce & Gabbana firmou sua marca em códigos da plástica siciliana, italianíssima, de massa à mesa e crianças brincando no jardim. La famiglia D&G… foi a comunidade que aprendemos a abraçar. Mas mudar é preciso, e a reinvenção tem mais sucesso quando está de alguma forma apoiada naquilo que é familiar.
Revisitando os arquivos da década de 1990, o duo de designers encontrou um norte para escapar do ‘quadradinho visual’ onde tinham se encaixotado. Saem grandes coroas e megalômanos prints. Entram formas de impacto em tecidos de alto calibre. Fica a sensualidade.
Corte e alfaiataria são destaque no sóbrio desfile de D&G
A nova estratégia da grife atende à demanda de um mercado que quer cada vez mais investir no eterno. A comunidade da casa é grande, forte e fiel, mas para quem é ‘de fora’, o ‘clubinho Dolce’ não brilhava o olho por não se consolidar nos movimentos da atualidade. Em seu outono, inclinou-se no inconsciente coletivo e se reposicionou no cenário de luxo, soprando com fôlego forte uma brisa muito fresca, e muito bem-vinda.
Gucci
Alessandro Michele saiu da Gucci, mas saiu mesmo? Precedendo o debut de Sabato De Sarno, apontado em janeiro como novo diretor-criativo da casa, o time interno de designers ficou a cargo de desenvolver a coleção de transição da casa, optando por se permanecer fiel aos códigos de Michele, honrando, assim, o ex-chefão.
Tom Ford também foi relembrado, e o que cruzou a passarela se encontrava entre o corte sensual desde deste e a verve excêntrica daquele. Se apoiando em duas eras icônicas da casa, o desfile fez exatamente o que prometia: como um bom hidratante neutro, não irritou a pele — mas também não fez milagre.
Arrivederci, Alessandro! Signos do antigo diretor-criativo batem ponto na primeira apresentação após o fim da gestão Michele
Bom tom: a era Tom Ford é relembrada em cortes minimalistas e cheios de sex appeal
Sutiãs ‘abusados’, que cobrem apenas os mamilos, lingeries da máxima transparência e uma alfaiataria à moda dos anos 1990 com certeza fizeram Tom, em algum lugar do mundo, sorrir com orgulho. De Michele, o glamour vintage, o high-low ousado e o fur coloridíssimo vieram dar alô. Ao todo, o desfile é uma versão ‘Rivotril’ do que fazia o italiano. É bonita, só não tem alma.
Considerando esse outono como um sorbet servido entre refeições, para limpar o paladar, foi bem-sucedido: mais do que nunca, a fome por Gucci está altíssima.
Christian Dior
Maria Grazia Chiuri anda em maus lençóis. Após uma sequência de apresentações menos que estimulantes, nas quais tudo — até sua competência como estilista de luxo — foi questionado, a diretora-criativa da casa parece estar, compreensivelmente, com medo. Medo de ousar, de criar… medo de pôr à mesa algo que vá além do “feijão com arroz”.
Seguindo seu histórico de homenagear mulheres, Chiuri se debruçou sobre os legados de Catherine Dior (sim, a irmã do fundador) e das cantoras Edith Piaf e Juliettte Gréco.
Em matéria de tema, foi certeira: elegeu personas heróicas, quase divinas, de valor para a casa, para o movimento feminista, para a história e para a cultura. Em matéria de roupa, conseguiu pecar, simultaneamente, pelo excesso e pela falta.
Com foco em tons neutros, de principal o preto, a linha revê elementos clássicos da alfaiataria, alternando entre feminino e masculino e borrifando a fragrância contemporânea da moda utilitária
New look? Estampas abstratas e acessórios pesados modernizam a tradicional silhueta ‘anos 1950’
Em 97 looks (que, considerando a assombrosa abundância de ‘duplicatas’, poderiam ser reduzidos numa quantidade mais sensata), Dior apresentou uma mulher nascida e criada em Paris. Elegante, discreta, foca naquilo que tem qualidade eterna, mas está longe de ser imune aos clichês parisienses: de Torre Eiffel no pescoço e boina no topo da cabeça, entregue-lhe um cigarro em mãos e boom!, fantasia completa.
Vendo em dobro: somando quase uma centena de produções, a coleção falha em apresentar novidades e conquista volume replicando seus próprios designs
Diferente de Dolce & Gabbana, cuja falta de excentricidades servia ao propósito de uma narrativa que quebra expectativas e remonta os códigos da marca com coesão, o “menos é mais” de Maria Grazia lembra só do ‘menos’ e esquece o ‘mais’.
Como um todo, a moda caminha em direção a um novo modo de enxergar as tendências, mais responsável e mais sustentável (em todos os sentidos da palavra). Contudo, a linha que separa o minimalista do entediante é um traço desenhado com caneta-tinteiro preta: fina, mas forte. Num mundo onde tudo parece já ter sido feito, não é fácil se manter no lado estimulante dessa risca.
Mas se uma coisa é clara, é que estímulo está no DNA Dior, e entregar o inesperado é natureza da casa. Coleções virão e passarão, algumas, mais empolgantes que outras… mas sempre haverá muito o que falar.
Balenciaga
Para quem tem tudo a perder, o mais seguro é não apostar nada. Em sequência a um escândalo sem precedentes na história da casa, a Balenciaga foi obrigada a dar um, dois, dez passos para trás. Reclusa e envergonhada após estrelar um dos maiores faux pas fashion — sua questionável campanha de fim de ano envolvendo crianças em torno de objetos ‘maiores de 18’ — a grife, que por muitos está irreversivelmente ‘cancelada’, deu giro de 180°. Não foi coisa só de estratégia e linguagem… nada disso. A Balenciaga como a conhecíamos já não é mais.
Preto da casa: como de praxe na marca, bloco de peças pretas confere clima sombrio à apresentação
Na busca de superar o insuperável, o diretor-criativo Demna Gvasalia jogou tudo para o lado. Convites irreverentes? Fora. Acessórios virais? Nunca mais. Desfiles tecnológicos? Coisa do passado. Crítica social. Por hoje não. Focou-se única e exclusivamente na arte de ‘fazer roupas’, na moda em si, deixando os truques e tablóides de lado. Quer esquecer esse lado midiático da casa, que sobrevivia de manchetes e indignação. Quer destacar a costura, o corte, a peça que cruza a passarela numa silhueta que diz: “Nada aconteceu!”. Afinal, observar o Fall 2023 desfilar pelo tedioso salão branco encomendado pelo estilista (“uma tela em branco”, explicou à Vogue) garante várias sensações, nenhuma delas nova.
Sempre muito bonitas e bem-acabadas, as produções poderiam pertencer a qualquer outra temporada do estilista: a mesma alfaiataria em preto de sempre, os vestidos floridos com botas altas por baixo… A modelo que abriu a apresentação, Eliza Douglas, foi a mesma que estrelou todo o Resort 2022.
Some things never change: nem as intensas reestruturações da Balenciaga foram suficientes para mudar o produto que carrega a etiqueta
Os óculos ‘de abelha’, o jeans com jeans, o sport wear, o carão pálido, carrancudo… Tudo no mesmo lugar em que há quase seis meses foi deixado. Sem o entretenimento de um conceito artístico para aguçar os sentidos e sem, também, a criação de uma moda que prendesse o olhar, a grife consegue o que talvez seja seu principal objetivo nesse março fashion: passar, pianinho, por debaixo do radar. Sem incomodar, sem fazer barulho.
Rostinho familiar: Fall 2023 Balenciaga faz lembrar desfiles passados da marca
Perder a liberdade crítica e contemplativa da moda é, sim, uma punição triste. Mas quando uma criança não se comparta… embora se vai o brinquedo. Por muito tempo, Demna teve o parquinho todo para si, pintou o sete, o oito, o nove. Abordou temas delicados, lançou peças controversas, foi chamado de fraude e de gênio, de louco e visionário. Enquanto as vendas eram boas e a marca estava em alta… que mal tinha?
Muitas de suas ativações despertavam o questionar. Jogavam um espelho sobre a sociedade e levavam a moda ao patamar da filosofia — não necessariamente bonita, mas fascinante e, portanto, desejável. Mas Ícaro alçou voo muito próximo ao sol, e as asas se derreteram numa coleção… morna.
Prada
Miuccia Prada vive seu momento ao sol, e dela ninguém isso tira. Nunca antes tão relevante, a Miu Miu foi, possivelmente, a marca mais comentada de 2022. A Prada segue emplacando desde o primeiro sopro da Re-edition de nylon. Tudo anda de vento em popa, e no Fall 2023 não foi diferente.
Apresentada no dia em que completou-se um ano da invasão russa na Ucrânia, a linha de natureza sóbria e política chega desenhando um ponto de interrogação, questionando o papel da moda numa sociedade manchada por guerra.
Sem emoção, mas com coesão, a grife apostou no minimalismo noventista pela qual faz fama. Mirou na crítica social, na importância da ‘modéstia’, na indispensabilidade do ‘comum’. Acertou no ‘basicão bacana’ que todo mundo quer usar.
Neutros com tímidos pontos de cor marcam a paleta cromática da Prada
O clash entre o feminino e o masculino encontra um lugar ao sol no Fall 2023
O conceito de “uniforme” foi o ponto de partida, dando luz a uma linha que reimagina fardas de enfermeiras, soldados e outros profissionais que se destacam em tempos de crise. Saias volumosas com aplicações nas barras prometem ser hit de vendas, pois vêm acompanhadas do mais hypado acessório das últimas temporadas: o pin com a logo Prada. Contrastavam com sweaters acinzentados e blazers de silhueta ‘quadradona’ — o amuse-bouche de uma deliciosa alfaiataria, que chega em cores vibrantes e caimento relaxado. Para todos os efeitos, uma simplicidade gostosa de querer.
Miu Miu
Falando nela, olha quem vem com nariz em pé e gingado no andar: dona Miu Miu, a menina dos olhos do mercado de luxo, não se atreve a brincar em serviço. Numa paleta de temas muito similares à da irmã mais velha, a grife também abordou modelagens sóbrias, apresentando um office wear com gostinho de anos 1990, tonalidades riquíssimas e, lógico, muita pele.
Olho nu: overdose de transparência é tendência não só na Miu Miu
Se o comprimento micro-mini foi o que fez essa bola de neve começar a rolar, nada mais justo que dar sequência ao burburinho. Com isso, a casa lançou à passarela uma das mais virais peças da temporada: os shortinhos ‘quase nada’ em variadas cores e texturas. Bateu o vento frio? Sem problemas. Combine com mega-casacos estilo puffer e robustos cachecóis. Look perfeito para as chamadas de Zoom.
Fiu fiu! Shortinhos ‘abusados’ são a nova aventura da casa no universo micro-mini
Com styling inteligente, a grife da cara nova a itens que não fogem do clássico
Mesmo chocante, a proposta do short-calcinha está longe de ser novidade. Começou a dar as caras sem qualquer timidez no final de 2022, e promete ser a ‘tendência premium’ de 2023 entre as ousadas e calorentas.
A insistência da Miu Miu nas variáveis aplicações da tendência demonstra uma estratégia de domínio do mercado bastante agressiva. Com forte apelo fotográfico, as coleções da grife têm facilidade em tomar conta das redes sociais, capas de revista e listas de desejo. Tornam-se alvos de incontáveis cópias em fast-fashions e inspiram sequências de DIYs, monopolizando o inconsciente coletivo (não tão inconsciente assim) e vencendo pelo cansaço até quem no início não gostou. Pode ser cansativo, mas ora, se não é efetivo!
Paco Rabanne
É triste o show após a despedida… e que despedida. Há muitos anos Paco Rabanne em pouco tinha a ver com a grife homônima, que é de domínio do conglomerado Puig. Contudo, a morte daquele que carrega na certidão o mesmo nome da maison não é de se passar em branco — e Julien Dossena se certificou disso.
Em seu Fall 2023, o diretor-criativo prestou uma homenagem cheia de camadas. Primeiro, misturou suas criações às do fundador — mas isso era de se esperar. Surpreendeu quando, em contato com a fundação Gala-Dali, teve acesso a pinturas de um conterrâneo amicíssimo de Paco. Quem? Salvador Dali.
Pintou um clima: peças de Salvador Dali viram fluidos vestidos na Paco Rabanne
Inspirada no passado histórico, a linha tem pé no surrealismo e um irônico clima futurista — algo saído de Barbarella, Dune ou Star Wars, com uma forte influência setentista e aura de ‘princesa das galáxias’. Pinturas do artista espanhol foram transformadas em largas estamparias, que fizeram tela dos vestidos e transportaram o espectador para uma época de sonho. Chasing Dreams, afinal de contas, é o nome da coleção. “Transcendendo a realidade física”, publicou a conta oficial da marca no Instagram.
Com tonalidades metalizadas e motivos celestiais, retrofuturismo guia porção de looks festa do desfile
After party: além dos vestidos de balada e looks noturnos, Dossena entrega propostas casuais para eventos do dia a dia
Não faz muito tempo que a Paco Rabbane recobrou sua relevância entre a ‘garotada jovem’, reconfigurando seus códigos de festive wear de modo fresco, mas respeitável. A expressão icônica da casa segue intacta, contudo, tem uma nova facilidade para dialogar com um novo público.
Pós-pandemia, o desejo por uma moda ‘barulhenta’ e, muitas vezes, imprática, caiu por cima de quem por muitos meses viveu entre moletons e sneakers. Com seus vestidos de metal fabulosamente complicados, suas peças de moeda e seus bordados delicados, Rabanne é sinônimo de festa. Nessa linha, traz propostas mais aconchegantes e descontraídas, cores, prints e um novo olhar sobre o próprio universo. Evoluindo, ouvindo, redescobrindo. Coisa que só faz quem pretende ficar no topo por muito tempo.
Coperni
Primeiro, veio o vestido de tinta. Aquele que, pintado sobre o corpo de Bella Hadid em setembro de 2022, foi capaz de ‘quebrar a internet’. Com seu apelo teatral, a trama que encerrou o Spring 2023 da Coperni foi aplaudida, por alguns, questionada, por outros. Em seu Fall 2023, a marca repete a dose — mas quando que o teatro deixa de ser um perfume, e torna-se uma muleta?
‘Robô’ a atenção: ‘cachorros’ eletrônicos são o momento viral da Coperni em 2023
No que foi por muitos descrita como uma assustadora interrupção, cães-robô da companhia tecnológica Boston Dynamics invadiram a passarela quando cerca de metade da apresentação já havia sido caminhada. Interagindo com as modelos, que dramaticamente se contorciam na direção das máquinas, recontavam a fábula d’O Lobo e Cordeiro. Ou, em tempos modernos, da tecnologia e dos seres vivos. Um translúcido véu de fantasia infantil posicionada acima de uma apresentação que em muito pouco é lúdica.
Da pele do lobo à inocência do cordeiro, a marca adapta o conto infantil para o paladar maduro
Seguindo o que já pode ser considerada a principal temática visual das semanas de moda Milão-Paris, a roupa ‘de escritório’, em tons de cinza e preto, foi foco. Grandes casacos de pele e lã equilibravam o efeito ‘saquinho’ de botas over-the-knee, e pequenas mãos prateadas ‘beliscavam’ peças em toile de jouy — um dos detalhes mais interessantes de toda a coleção, se me perguntarem. De maneira ousada e divertida, a dupla de designers Sébastien Meyer e Arnaud Vaillant traduziu a história de Esopo para uma linguagem moderna e desejável, introduzindo à raiz da label um novo elemento poderoso, mas igualmente perigoso: o apoio na qualidade “viral”.
Me belisca! Dedinhos nervosos são detalhe inesperado no desfile da Coperni
Para muitos, essa mise-en-scène não tem valor de design — é um jeito ‘preguiçoso’ de chamar atenção por algo que deveriam ser as roupas. A estes, aconselho: relaxe! A moda e o teatro andam juntos há muito tempo, gostam da companhia um do outro, e não merecem ser condenados à solidão. Contudo, tornar-se refém do ‘clicável’ é estar num espaço de insegurança. Quando seus truques não forem mais relevantes, a moda acaba?
A Coperni caminha numa linha bamba entre ambas as situações, tentando entregar o espetáculo que lhe é esperado, mas buscando também embasá-lo num contexto narrativo que faça sentido. Desejo-lhes boa sorte com essa missão! Afinal, a direção para a qual se aventuram é a mesma de onde retorna Demna e Balenciaga, com péssimas memórias da turbulenta viagem.