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Como um puro Havana: a despedida de Carlos Lyra

O Brasil acordou mais triste há duas semanas, com um sentimento de orfandade da poesia e da elegância de um tempo feliz que passou… um tempo de se dizer à menina amada “se você quer ser minha namorada, ah que linda namorada, você poderia ser” ou de se ter a certeza de que “não há amor sozinho, pois que é juntinho que ele fica bem” e que “é melhor se sofrer junto do que ser feliz sozinho, pois a solidão é como um jardim sem flor”.

Esse tempo, em que Ipanema era só felicidade, encerra-se definitivamente com a partida de Carlinhos, como era carinhosamente chamado pelos amigos; um artista sem par, um melodista único, uma elegância, um carisma, uma doçura e um sorriso inesquecíveis.
Uma perda que, mais que pessoal – pois que era um amigo único e sofisticadíssimo – é uma perda para a nossa própria identidade de brasileiros.

Eu, que moro há décadas fora do Brasil, quantas vezes fui surpreendido nos quatros cantos do mundo por onde andei pela melodia e a batida inconfundíveis do maestro de Ipanema. Por isso mesmo penso que com a morte de Carlos Lyra morre também uma era de ouro da nossa música e morremos também um pouco todos nós.

Carlinhos e Tom foram os pilares mestres da música que atravessou a galope todas as fronteiras do planeta, sinônimo de sofisticação e genialidade, e que mudou para sempre a imagem do Brasil aos olhos do mundo: a bossa nova. Mais do que isso, Carlinhos viveu a semear de poesia e encantamento nossas vidas, escrevendo as trilhas sonoras dos amores que tivemos, das emoções que dividimos, dos nossos encontros e desencontros inesquecíveis.

Um dia, disse-lhe eu: sei que cada canção que fizestes nada mais foi do que uma declaração de amor às mulheres. E ele concordou com um sorriso maroto.

Além de menestrel definitivo do Rio de Janeiro, Carlinhos cantou como poucos a beleza de suas mulheres em composições de pura elegância e delicadeza. Era o mais moderno e o último dos trovadores e sabia desvelar a poesia de todas as coisas, mago dos segredos do amor, do amar e ser amado.

Com Magda Botafogo, Lyra encontrou a sua musa derradeira e definitiva. E o amor que viveram foi a concretização de todas as suas utopias do amar. Companheira e guardiã inexpugnável do maestro, nela ele encontrou o amor de seus versos, pra quem, visionário que fora, Carlos cantou um dia, premonitoriamente “Coisa mais bonita é você, assim, justinho você, eu juro, eu não sei por que você. Você é mais bonita que a flor, quem dera, a primavera da flor, tivesse, todo esse aroma de beleza que é o amor perfumando a natureza, numa forma de mulher”.

Num país tão embrutecido e dividido como o de hoje, a arte e a presença do genial Carlos Lyra vão fazer muita falta, não somente à poesia mas também na denúncia de nossas endêmicas mazelas, como fez Carlinhos com a sua pouco conhecida ‘Canção do Subdesenvolvido’, de 1962, ou ainda na sua precoce lucidez na censura da opressão às mulheres, no manifesto da canção ‘Maria Moita’, de 1964. Mas o que dele se faz inesquecível é podermos a cada dia e sempre, cantar à mulher amada: “se quiser ser somente minha, essa coisa toda minha que ninguém mais pode ser”.

Longe do Brasil, Lyra sempre foi um elemento catalisador na preservação das minhas raízes indentitárias e emocionais. Mas confesso que ao ouvir pela primeira vez sua última canção ‘E Era Copacabana’, senti um frio na barriga e disse para mim mesmo: o poeta está se despedindo de nós e levando consigo um tempo feliz que se desfez como um puro Havana.

Descanse em paz, maestro seresteiro do amor, derradeiro trovador. Viverás para sempre abrigado nos corações que fizestes sonhar.

E era Copacabana

Noites febris
Tempos gentis
Eu já fui tão feliz
Mais do que eu quis
Mais que eu pude querer
E era copacabana

Loucas paixões

Tantas canções

Eu já tive ilusões
Momentos bons
Hoje com meus botões
Penso que nada mais me engana

Foi um tempo em que era tudo demais Tempos atrás Quimera fugaz

Sonhos de paz
E promessas banais
Mera fumaça que a vida desfaz
Igual a um puro havana

Caminhando pelas ruas assim
Dentro de mim
Nem penso ao que vim
Penso é que a vida
Nem sempre é ruim
É só o enredo de um mau folhetim
A vida é simplesmente humana

Foto: Robert Zuckerman

*Antonio Veronese é um pintor ítalo-brasileiro que se divide entre o Brasil e a França. É autor de obras como ‘Tensão no Campo’ ( Congresso Nacional); ‘Famine’ (FAO, Roma) e ‘Save the Children’ (símbolo dos 50 anos das Nações Unidas). Com mais de 70 exposições individuais em todo o mundo, Veronese é considerado pela crítica francesa como “um dos dez pintores vivos que já deixaram seus rastros na história da Arte”.

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