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Espaços públicos, vida e comunidade

Em 2020, uma pesquisa feita pelo Gehl Architects, nos Estados Unidos, levantou dados sobre como o uso dos espaços públicos influencia na vida da população e como este uso constante atuou de uma maneira decisiva para combater os efeitos psiquiátricos danosos da Covid-19. 
 

Quatro cidades foram estudadas na Dinamarca: Horsens, Helsingør, Svendborg e Copenhagen. Basicamente, se procurou entender os fundamentos do bem-estar dos indivíduos relacionados com espaços públicos e a sua contextualização em relação às informações coletadas. 
A metodologia incluía observar e analisar espaços urbanos – como as ruas e os espaços públicos, parques e playgrounds atendem a necessidades muito básicas e óbvias, mas que de alguma maneira se tornaram bem especificas para as comunidades urbanas durante e após a pandemia. 
 

Entre outros resultados, se verificou que:
 

  • Houve uma queda significativa na circulação de pessoas em ruas
    essencialmente comerciais;

 

  • A cidade foi usada como local de recreação, lazer e para atividades físicas ao ar livre – não predominando os usos comerciais e institucionais tradicionalmente relacionados como atividades primarias nos centros urbanos;

 

  • O uso de espaços públicos continuou constantemente em ascensão, enquanto movimentos que indicavam circulação entre locais de uso predominantemente residencial e uso predominantemente institucional diminuiu constantemente;

 

  • Locais próximos às zonas residenciais e que também oferecem atividades de lazer ficaram mais populares e mais frequentados;

 

  • Locais mais atrativos e com mais infraestrutura de lazer flexibilizam as regras de distância física no entendimento das pessoas;

 

  • Necessidades humanas relativas ao convívio social, em especial
    compartilhando espaços externos como parques, jardins, quadras de esporte, tornou-se mais importante;

 

  • Novas formas de vida urbana e novas atividades ligadas à natureza estão emergindo e várias cidades e em diferentes culturas;

 

  • Mais crianças e idosos estão usando os espaços públicos da cidade do que antes da pandemia;

 

  • Diferentes grupos sociais têm diferentes experiências e impressões
    quanto ao uso do espaço público das cidades.

 

  • O uso de veículos particulares e do transporte coletivo diminuiu, mas o movimento dos pedestres fora dos grandes centros urbanos vem aumentando.

 

Após a coleta de dados e através de uma abordagem inclusiva, a equipe da Gehl Architects criou um documento demonstrativo e ilustrativo da vida pública. 
 

As informações foram acrescidas com bases maiores, informações dos bancos de dados da cidade de Copenhagen, dados do Google e da Apple. Esta contextualização, junto com registros fotográficos e contagens in loco, levou a uma melhor avaliação do espaço público, mais real e instantânea, moldando os resultados apresentados no relatório.
 

Foto: Buenas Dicas/Unsplash

 

Como consequência, algumas questões foram levantadas, de maneira a julgar e orientar o planejamento e o uso de espaços públicos voltado ao bem-estar coletivo, a saber: 
 

  • Que tipo de ruas e de características urbanas são mais adequadas à  cidade pós-covid?

 

  • Por que as pessoas adotam determinados locais como preferenciais, quais são seus possíveis usos, e em que horário o fazem?

 

  • Como é a “nova” relação das pessoas com a cidade e o que deriva desta nova relação?

 

  • Quais tipologias de espaços públicos tem maior impacto na qualidade de vida e por que as pessoas estão ampliando os limites do seu “quarteirão” em busca de espaços mais agradáveis e convidativos?

 

  • O que acontece quando a vida é restrita a uma pequena área da cidade e como outras atividades “além do bairro” estão mudando a percepção das pessoas acerca do espaço urbano;

 

  • Como o desenho urbano pode favorecer o deslocamento – maior ou menor – das pessoas de maneira saudável e confortável;

 

  • Como o desenho urbano pode absorver o lado sensorial e intuitivo das pessoas e maximizar experiências ao ar livre – em relação ao ar fresco, a água pura, a luz do sol e o convívio com a natureza;

 

  • Como fortalecer as características de determinados pontos focais das cidades, promovendo locais de encontro e aumentando as possibilidades de sociabilização e de convivência;

 

  • Qual papel das tipologias espaciais, das condições sociais e das formas e localização dos edifícios na percepção das pessoas sobre os espaços públicos;

 

  • Como a COVID 19 redefiniu as prioridades de mobilidade urbana e como podemos avaliar o grau de acesso de cada faixa social às viagens essenciais dentro do tecido urbano.

 

Com a óbvia licença poética que a comparação demanda, já que se trata de uma comparação entre cidades dinamarquesas e Brasilia, cidade jovem e tombada, podemos trazer este tipo de questionamento para a nossa realidade. 
 

Brasilia, como sabemos é uma cidade diferente. Moldada na crença de que o protagonista é o automóvel e o que rege o futuro é a velocidade – “uma cidade construída para a velocidade é uma cidade construída para o sucesso” – o Plano Piloto é uma cidade jardim cortada por um eixo rodoviário. 

 

Este conceito, alimentado pelas rápidas transformações tecnológicas na área dos transportes, fizeram surgir no século XX não só Brasilia, mas diversas cidades projetadas em torno dos veículos particulares, menos densas e mais dispersas, divididas por zonas e segundo sua função, com áreas cada vez mais distantes entre si. 

 

O que não significava um problema, visto que tempo e distância seriam vencidos pela grande oferta de infraestrutura rodoviária. Novos tempos, novas relações e a pandemia nos trouxeram mais vontade de recuperar e fortalecer nossos laços comunitários. Estes laços são construídos 
historicamente dentro das cidades, as urbes que abrigam os locais nos quais se desenvolvem as relações interpessoais. 

 

Os atores principais deste cenário são seus moradores, e os espaços da cidade devem e podem convidar, dentro da autenticidade que podem promover, práticas de sociabilidade e de expressão de diversas identidades culturais. 
 

Tendo como foco a pesquisa do Gehl, podemos sair em campo para o exercício mais saudável e mais enriquecedor que um arquiteto pode praticar: a observação. Sair, olhar, conviver, perceber, intuir, conversar, e ser um curioso em relação ao comportamento das pessoas dentro do tecido urbano. 

 

Daí sim, saímos para aplicar conceitos, rever casos do passado, contextualizar e discutir profissionalmente sobre quais possibilidades e soluções, caso a caso, que o mundo teórico nos apresenta. 
 

Brasilia, felizmente, não fugiu à regra dos efeitos pós Covid no uso dos espaços urbanos – temos visto, no Plano Piloto e nas cidades próximas, muitos movimentos culturais e iniciativas pessoais tomarem corpo dentro de espaços que muitas vezes, eram negligenciados e abandonados. O que se nota é que os cidadãos tomaram a frente das decisões, evidenciando sua própria prioridade como atores que devem promover uma sociedade mais saudável e feliz. 

 

As comunidades assumem a responsabilidade de criar melhores espaços para os habitantes das cidades e se comprometem a pensar um desenvolvimento urbano mais equilibrado. 
 

Temos os já tradicionais espaços amplos e abertos à comunidade, como o Eixão do Lazer. Qualquer ida ao local, durante os fins de semana, e em qualquer horário, já nos possibilita entender o cenário rico e em ebulição do que vem se desenvolvendo ali. Rodas de samba, rock, jazz, festas de aniversário, brinquedos infláveis, foodtrucks, locais de encontro de determinados grupos, locais de piquenique, gente andando, gente pedalando, gente sentada na grama. 
 

Quem poderia imaginar que um eixo rodoviário poderia se transformar em um espaço tão flexível e saudável para a cidade, um parque linear que aos fins de semana atrai jovens, crianças, idosos e todo tipo de pessoas, de todo tipo de lugar e de todas as classes sociais? É rico e é inspirador, e é uma lição de que a cidade pode sim flexibilizar seu zoneamento, ser bonita e acolhedora, na medida em que são só os espaços compartilhados que agregam pessoas de maneira democrática, segura e equilibrada. 

O que faz diferença tem nome: pessoas morando em locais próximos, fácil deslocamento, a constante utilização das ruas, parques e praças, acessos fáceis e claros. O que nossa cidade deve e precisa ter – a cidade que pulsa, cuida e alimenta seus espaços públicos. A vida não é restrita a um pequeno espaço de superquadra – e é lindo e emocionante de ser ver. 
 

Os espaços públicos também viraram um palco – e agora mais e mais abrigam locais para shows, feiras, lojas, brechós, oficinas. Locais para festas, bares, apresentações de música, rodas de samba e chorinho. 

 

Movimentos de cultura alternativa, arte gráfica, cursos técnicos e saraus. Abrigo para mostras cinematográficas e shows compactos, oficinas de dança, moda, fotografia e pintura, capoeira, artesanato, gastronomia. Áreas que possibilitam o desenvolvimento de projetos de capacitação e recuperação para comunidades vulneráveis e jovens dependentes, oficinas de ciência para crianças curiosas. 
 

São inúmeras abordagens. E o mais interessante são os locais aonde se desenvolvem essas atividades: além dos parques e jardins, áreas verdes das entre quadras e praças, temos alguns cenários que são reaproveitados e ressignificados nas “sobras” urbanas: um galpão situado em uma casa na praça São Sebastião em Planaltina (Projeto 
Pé Vermelho – Espaço Contemporâneo) e um antigo conjunto de imóveis abandonados, reutilizados como espaço cultural, palco de manifestações culturais e artísticas e capacitação para a comunidade (Espaço Mercado Sul, em Taguatinga); residências que são a extensão dos espaços externos, de portas abertas para a comunidade, e não mais o contrário: a casa do artista João Angelini e a Galeria Olho de Águia, em Taguatinga Norte, iniciativa do fotojornalista Ivaldo Cavalcante, que promove exposições e mostras de cinema ao ar livre. 
 

Sendo assim, vamos voltar à pesquisa do Gehl Architects e vamos levantar alguns aspectos positivos da nossa cidade em relação aos questionamentos que ele apresenta. Sim, existem locais preferenciais e locais que atraem as pessoas, de maneira que elas se deslocam de suas residências mais distantes para usufruir de uma qualidade ou característica específica que só aquele local permite. 

 

Sim, as experiências intuitivas das pessoas em relação à nossa cidade 
migraram do espaço do aparamento, do pilotis e da entrequadra para fronteiras maiores. Felizmente. Infelizmente, ainda temos um caminho longo a percorrer. A cidade tem ótimos espaços de lazer, mas não é uma cidade agradável de se caminhar. O pedestre pena para poder ter segurança no seu deslocamento básico, e se depara com espaços malcuidados, quebrados, sujos e mal-conservados. 

 

Sob a ótica das possibilidades de vislumbrar o horizonte, de usufruir de grandes espaços arborizados e das possibilidades de uma cidade-jardim em relação ao contato com a natureza, estamos bem. Mas sob a ótica de uma cidade que deve ser viva, deve promover o acesso de todos os cidadãos a um direito básico difuso e coletivo de habitar bem, trabalhar bem, ter boa infraestrutura urbana, transporte coletivo, serviços públicos e lazer e se deslocar bem em uma cidade inclusiva, democrática e sustentável, estamos mal. 

 

Pensemos que nossa cidade está crescendo e que temos que pensar na 
qualidade de vida para o bem-estar das futuras gerações. Uma responsabilidade enorme. Quem comanda a relação entre a urbanização e a qualidade de vida? 
 

Sim, somos nós, que fazemos parte de uma comunidade. É preciso admitir que temos o melhor modelo de núcleo urbano aplicado à realidade dos conceitos modernistas, nisso Lucio Costa foi bem feliz. É preciso admitir também que temos problemas porque a cidade amadureceu e está congelada em alguns preceitos incompatíveis com a vida moderna, com a vida pós-covid. É preciso repensar nosso presente e nosso futuro como cidade tombada.
 

A interação e a contribuição positiva de arquitetos e planejadores urbanos, obviamente sempre em conjunto com a população, governantes, líderes comunitários, interventores, agentes da cultura popular e os diversos atores que ocupam o espaço urbano é a chave para a mudança. 
 

A maneira como a cidade de Brasília, mais especificamente o Plano Piloto, é administrada, a infraestrutura existente, os serviços que estão disponíveis e os espaços construídos são os principais fatores para iniciarmos nossa reflexão, na medida em que podemos pensar em possíveis contribuições para um sistema mais inclusivo e resiliente, com nossas comunidades integradas ao processo de melhoria desta cidade que chamamos de nossa.

Duda Almeida

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