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Coluna Clayton Camargos: de quem é a culpa da obesidade?

Considerada caso de saúde pública, obesidade é provocada por fatores além da alimentação. O que mais está por trás?
Foto: Unsplash

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Uma combinação de fatores fabricou um ambiente alimentar de abundância, e a maioria de nós não tem habilidade para lidar com isso. Para obscurecer o horizonte, temos promotores de soluções ineficazes que deixam os consumidores confusos e impotentes. Mais de 50% dos brasileiros estão portadores de excesso ponderal. Em todo o planeta, quando 3/4 da população não consegue navegar no sistema com sucesso, mostra que o problema é o sistema. Portanto, vamos fazer um exercício hipotético e dar crédito (culpa) a quem é devido.

A maior parte, vou com 60%, e, sim, é claro que estou inventando isso para quantificar como creio que a responsabilidade é dividida, vai para a indústria alimentícia, que desenvolveu produto após produto deliberadamente projetado para ser comido em excesso.

Os produtores de alimentos não começaram tentando deixar as pessoas gordas e doentes. Eles só queriam vender mais comida; esse é o trabalho deles. Mas à medida que foram aprimorando, ficou claro que o ganho de peso era um subproduto desse modelo de negócio. Agora, as pessoas que dirigem essas empresas estão aprisionadas entre a sua autoria fiduciária de maximizar o valor para os acionistas e a sua responsabilidade social de não contribuir para um imenso e progressivo problema de saúde pública.

O fiduciário parece vencer, especialmente porque a indústria alimentícia não se limita a distribuir os alimentos, os fabricantes também encomendam pesquisas e financiam braços de lobby para garantir que os consumidores tenham todas as razões para comer mais dos seus produtos.

Esses fabricantes também recebem uma ajuda significativa de quase todos no ambiente de varejo, que garantem que as delícias projetadas estejam na sua mesa 24 horas por dia, 7 dias por semana, 365 dias por ano. Não importa o que esteja no resto da sua loja, há Snickers no caixa.

Os produtores não são os únicos que tentam nos vender delícias, é claro. Esse é um objetivo importante da alimentação, não é mesmo? Os restaurantes concorrem obliquamente pela divisão do estômago, e uma das armas que possuem é o tamanho das porções. Você provavelmente já viu os dados e as ilustrações onde as porções modernas superam as de outrora. Os refrigerantes estão em volumes que chegam a meio galão. Os hambúrgueres de fast-food têm três vezes o tamanho que tinham na década de 1950.

O fato de haver mais comida em cada prato não importaria se não a comêssemos. Mas nós comemos e achamos bom. Quanto mais temos, mais comemos. Se você aumentar o tamanho da porção em 50%, comeremos de 10 a 40% a mais. Dobre e aumentaremos o consumo em 30 a 55%. Darei aos restaurantes uma fatia de 5% da “torta de culpa”.

Assim que nosso peso começou a aumentar, tivemos um crescente fértil de pessoas nos dizendo como emagrecê-lo. Muitos deles intencionam ajudar os que lutam contra o excesso ponderal. Outros são vigaristas declarados. Como não podemos entrar na cabeça dos “fornecedores de dietas”, nomino dessa forma os integrantes desse setor (os blogueiros estão nesse grupo), é difícil saber qual é qual, mas não consigo entender que alguém realmente acredite que seu tipo sanguíneo é importante para o emagrecimento. Por outro lado, percebo que muitas pessoas, digamos, que fazem dieta com baixo teor de carboidratos estão agindo genuinamente.

Foto: Freepik

No entanto, o resultado líquido é que a audiência dos “fornecedores de dieta” internalizou a idéia de que o emagrecimento tem mais a ver com o que, do que com o quanto você come, e se encontrar a combinação certa de alimentos, ou macronutrientes, ficará magro. Todavia, a maioria desses esforços falha e faz com que as pessoas se sintam como se tivessem fracassado. Os protocolos dietéticos podem repercutir resultados traumáticos e impactantes às vidas dos pacientes. Destarte, atribuirei aos “fornecedores de dietas” 9% da culpa.

Os nutricionistas, nutrólogos e endocrinologistas também têm a sua parcela de contribuição. No entanto, os cientistas da nutrição, que podem incluir essas profissões retro citadas, inclusive eu (tenho autocrítica), na sua maioria acadêmicos austeros e vigilantes à saúde pública, estimularam alguns prismas polêmicos e inexatos sobre dieta e saúde.

Venho fazendo isso há tempo suficiente para me lembrar de quando muitas pesquisas apontaram para o problema da gordura na dieta. Depois veio o açúcar e os carboidratos em geral. Agora são os alimentos ultraprocessados, e a nutrição de precisão está surgindo rapidamente. Nada disso está totalmente errado! E tenho a crer que estamos no caminho certo sobre os itens ultraprocessados, mas a mensagem não tem sido nada consistente.

Você pode culpar as pessoas por guiarem seus carros ao drive-thru? Se os cientistas não conseguem esclarecer as diferentes peculiaridades entre os conceitos de regime, dieta e estratégia nutricional, que esperança há para o resto da humanidade? Digamos 3% para os cientistas.

Claro, eles trabalhariam na obscuridade total se não fosse pela mídia. Muitos meios de comunicação são equivocadíssimos e, coletivamente, desempenham um papel impressivo na confusão sobre conceitos de alimentação e nutrição. A mídia fica com 5%.

Não estou nos absolvendo, os comedores. Sim, o mundo está contra nós, mas a nossa susceptibilidade coletiva a dietas estúpidas e soluções rápidas não resulta em nosso crédito. Embora eu não esteja obeso agora, já estive há algum tempo atrás, então ganhei o “nós” real. No final do dia, não comemos apenas o pão de queijo, fizemos todos os eventos das atividades de vida diária – trabalho, estudos, exercícios físicos, passeios de carro – uma oportunidade para comer pão de queijo. Então obtemos 10%.

Não menos relevante, é a timidez do Estado brasileiro na regência de uma política nacional que se imponha com vigor no combate ao excesso ponderal; instrumentalizando os gestores locorregionais com ações articuladas às sociedades científicas, que ofereçam um arsenal terapêutico composto pela promoção de estilos de vida saudável até medicamentos de últimas gerações prescritos por profissionais formalmente qualificados.

Sem embargo, é improvável que as soluções propostas para transverter o nosso ecossistema alimentar, isto é, impostos, proibições, rotulagem, educação, enfim, políticas públicas de saúde, sejam homologadas no nosso ambiente parlamentar; conta ainda o fato de que nenhum desses expedientes elencados produziu uma redução de peso, significativa e sustentável, com alcance populacional robusto, em qualquer lugar onde tenham sido arriscados. Portanto, ao governo 3%.

Atribuir culpa não é exclusivamente desabafar, é apenas um benefício acessório. Embora saibamos que se trata de um estado da arte plurifatorial, decifrar a causa essencial da obesidade ainda é um passo engenhoso para trata-la. Existem, é claro, outros fatores, então deixarei os 3% restantes para motores que não mencionei, mas que você vai me dizer que esqueci.

O que nos direciona aos novos medicamentos para emagrecimento. Estou otimista de que a segurança sobre a farmacoterapia prosperará e acabará por se tornar acessível a todos os que os desejam e, sobretudo, tenham indicação clínica. Eles são incretinas, também chamados de agonistas de GLP-1 (Wegovy, Mounjaro e Ozempic estão todos na categoria) e imitam um hormônio, o peptídeo-1 semelhante ao glucagon que estimula a secreção de insulina e retarda o esvaziamento do estômago. Esses medicamentos afetam rigorosamente vários aspectos da nossa bioquímica e metabolismo, mas o resultado final é que, se você for como a maioria das pessoas que estão cursando o tratamento, terá sua vontade de comer bastante constrangida.

Como os medicamentos para emagrecimento têm uma longa e sórdida história de serem mortais, a euforia aqui deve ser cautelosa. Embora, estas drogas não sejam recentes; têm sido usadas para tratar diabetes há muitos anos, por isso temos um conjunto de evidências nas quais recorrer para avaliar o perigo. A pancreatite e o câncer de tireóide, por exemplo, são bastante assustadores, por isso ajuda saber o quão raros se apresentam: uma meta-análise de 2021 não mostra aumento do risco de pancreatite devido aos agonistas do GLP-1, e os números de câncer de tireoide foram exíguos para raciocínios concludentes. Clique aqui para acessar o estudo.

Nada disso significa que temos garantia de segurança! Mas aqui está a pergunta que tenho para você: você quer que eles funcionem? Uma objeção que ouço sobre esses medicamentos é que não alcançam a raiz da obesidade, mas entendo que é exatamente isso que fazem. Normalmente, há algum tipo de reconhecimento morno de sua utilidade, mas depois muita ênfase nos efeitos adversos que podem acontecer. Este é um sintoma de não querer que funcionem.

Se o indivíduo ganha a vida vendendo algum tipo de dieta ou suplemento, é compreensível que torça contra esses remédios. O mesmo vale se a percepção sobre o excesso de peso passe pelo raciocínio estapafúrdio de que corpos gordos deveriam trabalhar duro para serem magros e não merecedores de um atalho. De toda sorte, tenho dificuldade em encontrar outro motivo pelo qual essas drogas não sejam bem-vindas.

Ocorrem relatos de intolerâncias às reações colaterais: as náuseas costumam ser o problema. De outra parte, alguns indivíduos não conseguem obter esses medicamentos, um transtorno específico aos portadores de diabetes que ficam prejudicados, porque muitas pessoas estão usando para emagrecer aqueles incômodos e cabalísticos 3 kg, comprometendo as reservas e distribuições dos agonistas de GLP-1. Outros podem adquiri-los, mas, por razões econômicas, não conseguem sustentar a intervenção. O sucesso a longo prazo dependerá da redução de preço e do aumento ao acesso, especialmente porque o abandono abrupto do protocolo muitas vezes resulta em rápidos ganhos de quilos adicionais, pelo que este pode ser um tratamento sine die.

Fomos atingidos pela imponência tecnológica, e os novos medicamentos conferem antagonismo à indústria da comida. Eles nos equipam para finalmente lidarmos de modo competente com a fartura dos alimentos. Se quisermos mudar nosso ambiente de consumo infrene, desafiemos a demanda, não a oferta.

Painel resumido sobre de quem é a “culpa” da obesidade:

*Clayton Camargos é sanitarista pós graduado pela Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/Fiocruz. Desde 2002, ex gerente da Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC) do Ministério da Saúde. Subsecretário de Planejamento em Saúde (SUPLAN) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Consultor técnico para Coordenação-Geral de Fomento à Pesquisa Em Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Coordenador Nacional de Promoção da Saúde (COPROM) da Diretoria de Serviços (DISER) da Fundação de Seguridade Social. Docente das graduações de Medicina, Nutrição e Educação Física, e coordenador dos estágios supervisionados em nutrição clínica e em nutrição esportiva do Departamento de Nutrição, e diretor do curso sequencial de Vigilância Sanitária da Universidade Católica de Brasília (UCB). Atualmente é proprietário da clínica Metafísicos.