A vida humana pode ser comparada a uma longa travessia marítima. No início, as águas são calmas; o corpo responde, o humor floresce e a vitalidade dança. Mas, todos nós somos passageiros em uma embarcação que enfrenta, inexoravelmente, duas tempestades avassaladoras: uma surge em torno dos 40 e outra, mais feroz, aos 60 anos de idade.
É exatamente isso o que mostrou um estudo hodierno da Nature Aging, Nonlinear dynamics of multi‑omics profiles during human aging (2025). Ao acompanhar 108 pessoas entre 25 e 75 anos, foram identificados pontos de inflexão moleculares aos 44 e 60 anos, com mudanças abruptas em metabolismo lipídico, inflamação e regulação imunológica.
Imagine que seu corpo é uma cidade: entre os 40 e 60 anos de idade, chega uma enchente; ruas alagam, a energia falha e tudo exige reparos urgentes! Essas alterações biomoleculares falam de aumento do risco de doenças cardiovasculares, diabetes, demências e até câncer. Nos EUA, por exemplo, as doenças cardíacas afetam 40% das pessoas de 40 a 59, sobem para 75% entre 60 e 79 e atingem 86% depois dos 80 anos.
Mas estamos falando de números e dramas, e você quer saber: quando o envelhecimento realmente bate à porta? Entre 44 e 60, meus caros. E não espere que ele seja gentil. É como se, depois dos 40, o conforto se desfizesse e um laboratório microscópico em nosso interior começasse um experimento caótico com proteínas, genes e inflamação. Aos 60, tudo se exacerba: carrega-se sobre o corpo uma segunda tempestade, mais intensa, mais demolidora.
No Brasil, a tempestade se aproxima em vários portos. A população com 65 anos ou mais já soma para além de 14 milhões, cerca de 7,4% do total, e essa onda só tende a crescer. E quanto é que afeta? A mortalidade em maiores de 60 anos representa 71% dos óbitos, ainda que em queda, segundo o IBGE: houve redução de 5,7% nesses grupos em 2023, com as maiores quedas (7,9%) em maiores de 80 anos. Isso reforça um ponto vital: viver mais tempo saudável não é utopia. É uma meta possível, que está em jogo agora.
No plano genético e molecular, o envelhecimento é influenciado por alteridades elegantes e cruéis, que incluem a epigenética com relógios de metilação, e inflamação persistente (a famosa inflammaging), que corroem o corpo como ferrugem silenciosa. Esses processos, meus caros, são arquitetados tanto por genes herdados quanto por escolhas de vida: alimentação com predomínio de ultraprocessados, sedentarismo, sono precário, estresse crônico.
Agora, vamos à ciência nacional: um estudo recente da ELSI‑Brazil (Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos Brasileiros) com quase 9.500 pessoas acima de 50 anos aplicou modelos de machine learning para prever mortalidade.
O destaque é o desempenho do modelo, mensurado por um índice chamado AUC (Área Sob a Curva [ROC]). Esse índice varia de 0 a 1 e indica a capacidade do modelo em distinguir corretamente entre quem tem e quem não tem o desfecho analisado (neste caso, o óbito).
Um AUC de 0,92 é considerado excelente, sinalizando que o modelo tem uma acurácia muito alta para prever mortes com base nos dados analisados: como idade, índice de massa corporal (IMC), uso de medicamentos, presença de doenças crônicas e nível de atividade física. É a prova cabal: é possível traçar um perfil de risco, e intervir.
Além disso, a OPAS (Organização Pan‑Americana da Saúde) divulgou em 2024 um relatório regional sobre envelhecimento saudável, apontando um avanço de mais de 20% em ações apoiadas por políticas públicas entre 2020 e 2022. Isso mostra que o envelhecimento é uma causa coletiva, que precisa de suporte individual e de sistemas de apoios mais complexos.
Agora, respire fundo. O que tudo isso realmente significa para você, eu, para seu avô? Significa que as tempestades existem e são ferozes. Mas não somos barquinhos sem leme. O estilo de vida é a nossa bússola, ela pode desviar tempestades.
A alimentação, com efeito, é força e proteção. Nutrir seu corpo com antioxidantes (frutas, legumes), fibras (massas integrais, legumes), gorduras boas (peixes, oleaginosas) é como reforçar os diques da cidade antes da enchente, fustigados, mas não vulneráveis. O padrão alimentar saudável desacelera o relógio epigenético e modula os marcadores de inflamação. Estudos de metilação mostram que quem segue uma dieta com baixo consumo de alimentos de origem animal e se exercita regularmente modera esse relógio .
Nutrição é estratégia. Aliar proteínas magras, vitaminas, minerais, prebióticos, ômega‑3 e compostos bioativos protege músculos, ossos, neurotransmissores. É a pólvora para enfrentar a segunda tempestade aos 60 anos. Cada garfada saudável é um tijolo colocado em alicerces. Uma ação psicológica que diz ao corpo e à mente: vai dar certo.
Há a mente e o espírito. O envelhecimento não pode ser tratado como ato isolado da biologia: nossa bagagem histórica, social, afetiva, filosófica modela como envelhecemos. Uma pessoa engajada socialmente, com propósito e acolhimento afetivo, reconfigura seu mapa neurológico, hormonal e social. A resiliência emocional desacelera a inflamação e protege telômeros: é o elo que falta no debate técnico.
Simone de Beauvoir, em A Velhice (1970), foi talvez uma das primeiras intelectuais a expor o idoso como um sujeito exilado não apenas do desejo, mas também da dignidade. Ela argumenta que a sociedade moderna, fundada na produtividade e no culto à juventude, escolhe não ver os velhos, não por acaso, trata-se de uma forma de segregação por invisibilidade.
Nesse jogo de exclusões, Michel Foucault em Vigiar e Punir (1975) aponta que a velhice é construída como uma categoria do saber e do poder, regulada por instituições médicas, jurídicas e familiares que definem o que é ou não um corpo útil. É o biopoder gerenciando os limites da existência, inclusive, os limites do que se entende como envelhecer “com sucesso”. O corpo velho, ao perder capital simbólico e força produtiva, torna-se território de vigilância, de silêncio e de medicalização.
Freud alcança o envelhecimento como o tempo em que o ego é finalmente confrontado com sua finitude, com a perda dos ideais narcísicos da juventude e da potência sexual.
Jacques Lacan em O Seminário, livro 11 (1985), por sua vez, amplia esse diagnóstico discutindo que o idoso é aquele que precisa se haver com o desmoronamento do semblant, da aparência de coerência entre o corpo, o desejo e o Outro.
Por isso, volto ao início: as tempestades não vão passar por você despercebidas. Mas enquanto o corpo grita com moléculas em frenesi, a mente, a nutrição, o afeto e a sociedade podem ser capas de chuva: resistentes, funcionais, belas.
A velhice escancara a falha da completude, revela a inconsistência da fantasia de domínio sobre o tempo. Envelhecer, portanto, é ser forçado a reconfigurar o lugar do desejo, do gozo e da linguagem. Não há envelhecimento sem uma reformulação radical da imagem do eu, e, talvez por isso, seja tão difícil.
A biologia não explica tudo; tampouco a sociedade determina tudo. O envelhecimento é, em última instância, um acontecimento profundamente humano: uma travessia onde o sujeito, os seus signos e os seus espelhos precisam inventar novos modos de ser diante do inevitável.
Eu afirmo que precisamos envelhecer com anos de vida com qualidade, de sorte que estejamos integralmente aqui, e não apenas pedaços daquilo que um dia fomos, como um walking dead. O envelhecimento, mais do que uma decadência fisiológica previsível, é um processo biográfico, político e simbólico moldado obliquamente pela cultura.
Envelhecer é sim angustiante, pois é a incerteza do post-mortem em corpo presente. De ínfima poeira das poeiras. Fernanda Montenegro afirma que o dia que você deixa de ter angústia, você tem Alzheimer ou outra doença desse tipo que te tira da vida. Que te tira da vida em corpo corrente. Percebe?
Quando o relógio bater 44 e você sentir o primeiro trovão interno, lembre-se: não é fim, é alerta. Quando aos 60 anos, se o vendaval se intensificar, haverá chances reais de reconstrução biológica e existencial. Informação, prevenção e intervenção: essas três palavras formam o tríplice amuleto que podemos usar e regozijar.
É custoso envelhecer. Mas a outra alternativa não é nem um pouco alvissareira.
Informação é prevenção. Você tem alguma dúvida sobre saúde, alimentação e nutrição? Envie um e-mail para dr.clayton@metafisicos.com.br e poderei responder sua pergunta futuramente. Nenhum conteúdo desta coluna, independentemente da data, deve ser usado como substituto de uma consulta com um profissional de saúde qualificado e devidamente registrado no seu Conselho de Categoria correspondente.
*Clayton Camargos é sanitarista pós-graduado pela Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/Fiocruz. Desde 2002, ex-gerente da Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC) do Ministério da Saúde. Subsecretário de Planejamento em Saúde (SUPLAN) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Consultor técnico para Coordenação-Geral de Fomento à Pesquisa Em Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Coordenador Nacional de Promoção da Saúde (COPROM) da Diretoria de Serviços (DISER) da Fundação de Seguridade Social. Docente das graduações de Medicina, Nutrição e Educação Física, e coordenador dos estágios supervisionados em nutrição clínica e em nutrição esportiva do Departamento de Nutrição, e diretor do curso sequencial de Vigilância Sanitária da Universidade Católica de Brasília (UCB). Atualmente é proprietário da clínica Metafísicos.
CRN-1 2970.