Meus senhores, minhas senhoras, sois vós a plateia de fiéis famintos e hipócritas, escutai a boa nova: o Brasil não ruiu na tentativa de golpe em 08/01/23 no coração da capital federal. Ruiu no instante em que o arroz com feijão foi trocado pela sopa de ossos. No instante em que o torresmo foi apedrejado por nutricionistas de Instagram. No instante em que a farofa foi excomungada em nome da circunferência da cintura.
O Brasil ruiu à mesa.
Sim, caríssimos, você que me lê com a boca cheia de rúcula, você matou o País. O crime não foi de hoje. Foi silencioso, covarde, cometido a cada mordida no peito de frango sem sal empanado com chia.
A refilmagem da novela Vale Tudo, exibida pela TV Globo, trouxe à cena uma discussão central de nossa época: a redução da comida à sua linguagem médica. No diálogo entre Odete Roitman, interpretada por Debora Bloch, sua irmã Celina Junqueira, vivida por Malu Galli, e o filho Afonso Roitman, encenado por Humberto Carrão, o embate se dá com o discreto charme da burguesia.
Afonso: […] porque a minha nutróloga disse que estou comendo pouca proteína e pouco carboidrato.
Odete: ai, eu sinto tanta saudade de quando chamávamos as comidas pelos nomes dos pratos; Bouefe Borguignon, Fricassé, Bouillabaisse.
Celina: é verdade.
Odete: não é, Celina? Até quando se usava dos nomes dos ingredientes eu tolerava bem. A pessoa comia uma carne com batatas e cebola. É um pouco didático e até primitivo, mas pelo menos estava no campo da gastronomia, né? Porque essa denominação médica já é um pouco demais. A pessoa comer carboidratos, proteínas, gorduras é de uma deselegância completa. Parece que estou comendo uma receita médica. Ah, vamos preservar o mistério das coisas. Não é, minha gente?
Na novela, Afonso, médium da caretice, ergueu sua voz anêmica e proclamou: “minha nutróloga disse que estou comendo pouca proteína e pouco carboidrato”.
Eis, o evangelho da penúria servido em porções de 100 g! O rapaz fala como atendente de balcão de farmácia.
Em tempo: por que raios uma nutróloga e não uma nutricionista?
Mas Odete, ah Odete! Que santa endiabrada! E ainda suspira pelos nomes que são delícia só de serem ditos: Bouefe Borguignon, Fricassé, Bouillabaisse. Palavras que já vêm com vinho, adultério e gordura escorrendo como lágrima de santo bêbado.
Só de dizer Bouillabaisse já dá fome. O som da palavra enche a boca. Mas hoje não: você não come um prato, você ingere macros. É a anatomia da comida.
Celina? Sempre decorativa, balbucia: “É verdade”. E pronto. O coro da mediocridade está formado. Ela é o rebanho de ovelhas magras e infelizes que concorda com tudo, incluindo as forças diabólicas do jiló.
O campo semântico é revelador. De um lado, a nomenclatura nutricional, isto é, proteína, carboidrato, gordura, linguagem de antídoto. De outro, os nomes de pratos e ingredientes como carne com batatas, aqui encontramos comida de verdade.
O diálogo, lido com Foucault (História da Sexualidade I: A vontade de saber, 1976), revela uma tecnologia de poder. A comida é campo privilegiado desse governo dos corpos. Comer “pouco carboidrato” ou “excesso de proteína” não é apenas uma observação normativa: é estatuto que disciplina, produzindo distinções entre bons e maus comedores.
Nikolas Rose, em The Politics of Life Itself (2007), acrescenta: governar a saúde é governar a alimentação.
Essa moralização também reforça desigualdades. O acesso a alimentos considerados “corretos” é privilégio de grupos de maior renda. A disciplina alimentar, revestida de ciência, funciona como marcador de status. O corpo magro, regulado por prescrições, é valorizado; o corpo gordo é estigmatizado como falha de caráter.
O biopoder é o fiscal da geladeira.
Eu vou adiante, e falo em necropoder da boca. Apedrejaram a feijoada como maldição e transformaram a gula, o mais selvagem dos pecados, em boletim calórico.
O conceito de nutricionismo, elaborado por Gyorgy Scrinis (Nutritionism: The science and politics of dietary advice, 2013) e difundido por Michael Pollan, descreve essa redução: o alimento perde sua totalidade cultural e se fragmenta em nutrientes isolados. A cena de Vale Tudo é uma caricatura desse processo.
É a tirania do nutricionismo. O sujeito já não beija, já não ri, já não goza. Ele calcula quando pesa o prazer na balança dividindo a vida em gramas.
E o pior: vocês gostam. Vocês adoram o chicote. São masoquistas da própria fome. Lambem a culpa como quem chupa picolé.
Georges Canguilhem, em “O normal e o patológico” (2009), mostrou que categorias médicas não são neutras. Definir o que é “equilibrado” ou “desequilibrado” em termos alimentares é construir fronteiras entre normalidade e desvio. A fala de Afonso é a reprodução dessa fronteira. A menção ao diagnóstico da nutróloga confere o registro de verdade normativa.
Para entender melhor tudo isso, voltemos às origens lá na Grécia antiga: a frase de Hipócrates, pai do sistema medicinal, “que seu remédio seja seu alimento, e que seu alimento seja seu remédio”, aparece como raiz histórica dessa medicalização.
Hipócrates, coitado, foi elevado a pastor de um culto sem prazer. Hoje, caro leitor, você mastiga comprimidos travestidos de alface.
Essa crônica não nega a importância científica de articular dieta com doenças crônicas. Até porque, esse é o meu ofício. A evidência é robusta: padrões alimentares saudáveis reduzem riscos cardiovasculares, metabólicos e oncológicos.
O problema é a transformação desse argumento em discurso moral e disciplinante. Essa “regulação” é de uma superficialidade enorme. É na verdade um desserviço. Não há cabimento à redução da comida para escolhas binárias entre certo e errado, sem espaço para prazer, história e identidade.
Quem mastiga sem prazer, pecador é. Escutem: a mesa virou altar de castigo. Não há pão. Há culpa. Não há vinho. Há jejum intermitente.
Meus caros, eu vos anuncio o fim. O Apocalipse não virá com fogo, não virá com dilúvio. Virá com a classe média se ajoelhando diante da tapioca fit como se fosse hóstia consagrada, erguendo o copo morno de suco detox como cálice da perdição, olhando uns para os outros com sofreguidão e exclamando: “força, foco e fé”!
Odete encerraria dizendo: “Celina, que gente cafonérrima”. Ela tem razão, precisamos preservar o mistério das coisas. É nesse mistério que a comida deixa de ser bula e volta a vida.
Alimentação saudável é força e proteção. Informação é prevenção. Você tem alguma dúvida sobre saúde, alimentação e nutrição? Envie um e-mail para dr.clayton@metafisicos.com.br e poderei responder sua pergunta futuramente. Nenhum conteúdo desta coluna, independentemente da data, deve ser usado como substituto de uma consulta com um profissional de saúde qualificado e devidamente registrado no seu Conselho de Categoria correspondente.
*Clayton Camargos é sanitarista pós-graduado pela Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/Fiocruz. Desde 2002, ex-gerente da Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC) do Ministério da Saúde. Subsecretário de Planejamento em Saúde (SUPLAN) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Consultor técnico para Coordenação-Geral de Fomento à Pesquisa Em Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Coordenador Nacional de Promoção da Saúde (COPROM) da Diretoria de Serviços (DISER) da Fundação de Seguridade Social. Docente das graduações de Medicina, Nutrição e Educação Física, e coordenador dos estágios supervisionados em nutrição clínica e em nutrição esportiva do Departamento de Nutrição, e diretor do curso sequencial de Vigilância Sanitária da Universidade Católica de Brasília (UCB). Atualmente é proprietário da clínica Metafísicos.
CRN-1 2970.