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Caso Daniella Perez: lembranças de uma tragédia carioca

Trinta anos depois, faço uma revisão daquele 28 de dezembro e de como ele mudou a minha vida e a do País

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**Naquela segunda-feira, 28 de dezembro de 1992, a campainha de casa tocou mais cedo que o habitual.** Casado havia pouco mais de dois meses e meio, eu morava na Rua do Riachuelo, no Bairro de Fátima, zona central do Rio de Janeiro, bem perto do trabalho. **Era comum, portanto, que problemas profissionais dos outros tirassem meu sono durante a madrugada.** Afinal, as redações funcionavam 24 horas por dia e, vez por outra, repórter, fotógrafio e motorista precisavam de uma mediação…

**Pela pressa do toque, já podia adivinhar que quem batia era o jornalista Paulo Gusmão, hoje competente assessor do Sebrae-DF.** Ele andava às turras, não sem razão, com o fotógrafo da madrugada de _A Notícia_, integrante do Grupo O Dia. **A Notícia era um jornal popular fundado para não abandonar os leitores mais antigos de _O Dia_, que passara por uma modernização e estava com jornalistas de primeiro time.** Eu estava no começo de carreira. Andreia, minha esposa, fazia estágio, assim como o Paulo Gusmão, que atuava na madrugada, o que era proibido, mas ninguém ligava.

**Eu sabia que Paulo não estava trabalhando com o fotógrafo em questão, mas o sono era mais forte.** Abri a porta só de calça de pijama, pelo calor insuportável do verão carioca. E já me preparava para dar mais uma bronca, pois queria ter ao menos um pouco de privacidade na vida de recém-casado. **Não tive tempo sequer para dar o “bom dia”.**

“Sei que não era para vir te incomodar mais com coisa besta, mas agora é sério”, disparou o Paulo. **”Mataram a Daniella Perez.** Foi o Bira (nome do personagem de Guilherme de Pádua na novela _De Corpo e Alma_, cuja autora era Gloria Perez, mãe da atriz)”, completou.

De imediato, o sono acabou. **Não era um crime como os que cobríamos no jornal.** Este envolvia uma atriz talentosa e ascendente, um ator que poderia se transformar em um galã nos anos seguintes e a novelista, mãe da jovem estrela. **Fora que havia ainda a questão da novela, em cartaz na Rede Globo, a maior opção de lazer dos brasileiros daqueles tempos, pois a TV a cabo engatinhava.** Netflix, então, nem se julgava poder existir algo do tipo um dia…

**Surtei com os componentes prévios da história, pois ainda não sabíamos dos detalhes complexos, como a participação de Paula Thomaz. Ela era a então mulher de Guilherme de Pádua, que morreu neste ano de 2022.** Bolava manchetes, não me importava mais com o fato de ter sido acordado e começara a andar pela casa, quando Paulo me deu mais uma informação relevante: **a rotativa do jornal pegara fogo e o prédio estava interditado.**

**Era muito episódio junto. Liguei o rádio – pasmem, não tinha TV em casa. E estava tudo lá.** Tirei Andreia Salles da cama e fomos os três – eu, ela e o Paulo Gusmão – para a redação. Ou melhor: para o botequim que ficava em frente à redação, onde o chefe de reportagem de _O Dia_ também passou a trabalhar. **Ali, Renato Homem cunhou uma frase genial no meio daquele caos: “A redação está no lugar de onde nunca deveria ter saído: o bar”.**

Como eu era um misto de editor de cidades e polícia com chefe de reportagem, **minha primeira função era dar fluxo para o complemento da informação.** Mandei Andreia, minha mulher, para a delegacia apurar. Junto com a saudosa **Albeniza Garcia**, de _O Dia_, nossa madrinha de casamento, ela trouxe a história que completava a apuração do Paulo. **Depois, tratei de conseguir entrar no prédio, em plena operação rescaldo, para recuperar todos os adiantamentos** – e o fiz andando de costas, como se estivesse saindo, para não ser barrado por um dos bombeiros.

**Com as páginas prontas na mão e as equipes na rua, tratei de completar as informações que os chefes já tinham.** As fotos já estavam em um laboratório de confiança, para serem reveladas – e eis aqui outro fato: **o fotógrafo, de nome J. Moreno, havia brigado com um dos atores da novela, e o conflito destruiu a máquina.** Por sorte, o filme com as imagens do local e dos artistas lamentando o assassinato ficou inteiro.

**Consegui também uma máquina de escrever, para adiantar o que podia, com o auxílio da TV do bar, sintonizada na Globo.** A cada plantão, mais informações. Usava o telefone do botequim para conseguir notícias com fontes – lembrem-se: **não havia celular ainda e ligar para um número fixo era demorado e sem garantia de ser atendido.** Arrumei também o espaço onde poderíamos escrever as matérias, pois os chefes do jornal – Jaguar (ele mesmo, o do Pasquim), o falecido José Alberto Cal Monteiro e Roberto Ferreira -, em conjunto com a direção, já haviam garantido que haveria impressão.

Posso dizer que trabalhamos no automático. **Jornais eram importantes na época. Concentravam as informações dispersas e eram muito vendidos.** Creio que rodamos algo como 80 mil exemplares. **Não tivemos encalhe na edição do dia 29.** E poderíamos ter rodado mais exemplares, não fosse o incêndio na rotativa. **Imprescindível dizer que éramos um jornal de cores sensacionalistas e um toque de humr, dado pelo Jaguar.** Capa, fotos, textos e títulos tinham esta pegada. **E gostávamos de execrar com o vilão, no caso o casal Guilherme de Pádua e Paula Thomaz.** Eram outros tempos. **Nisso eu creio que a imprensa mudou para melhor: hoje, há mais moderação nos regendo.**

**Fechada a edição, sem poder fazer algo que eu adorava, que era pegar os primeiros jornais de acerto para uma última leitura, fui para casa ainda sem conseguir absorver o que foi aquele crime.** Já havia visto atores falecerem durante as telenovelas, como Sérgio Cardoso (substituído por Leonardo Villar em _O Primeiro Amor_, de 1972) e Jardel Filho (em _Sol de Verão_, de 1983). Mas nunca houvera um crime em uma novela. **E como estaria emocionalmente Glória Perez, cuja filha morreu? Como ficaria a trama? Eram perguntas e pautas para os dias posteriores, que sinceramente não lembro das respostas.**

Estas questões, hoje, não são importantes. **Mas Gloria Perez é. Ainda atuando como escritora, ela teve um papel fundamental na vida dos brasileiros. Graças à sua movimentação e ao seu abaixo-assinado, a Lei de Crimes Hediondos foi ampliada e passou a contemplar casos violentos e socialmente traumáticos, impedindo o relaxamento das prisões.** Até a morte de Daniella, aos 22 anos, a legislação abrangia casos como sequestro, estupro e latrocínio. **Gloria conseguiu que os parlamentares mudassem a lei e transformassem homicídio também em crime hediondo.**

Os dois assassinos de Daniella Perez foram julgados em 1998, homicídio duplamente qualificado e por motivo torpe e sem possibilidade de defesa da vítima. **Guilherme de Pádua foi sentenciado a 19 anos e Paula Thomaz, a 16 anos.** Como manda a lei, acabaram soltos após cumprirem um terço da pena – pouco mais de seis anos no caso dele e de cinco no dela.** Pádua morreu em novembro deste ano,de infarto, aos 53 anos. De Paula sabe-se pouco,

Trinta anos depois, **a cabeça do jornalista guarda as imagens de um dia repleto de episódios e descobertas que nunca mais vão se repetir, em um caso policial único** – Guilherme de Pádua teve o cinismo de ir consolar a família de Daniella horas depois de matá-la, justificando o axioma de que **”o assassino sempre volta à cena do crime”**. Glória conseguiu mudar a legislação de um País e ainda guarda uma saudade e uma dor que só as mães sabem o tamanho. **Eu sigo casado com Andreia e amigo do Paulo – hoje, todos morando em Brasília.**

**É, aquele 28 de dezembro de 1992 foi triste, complexo e histórico.**