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Artigo: Sérgio Britto, porque somos feitos da mesma matéria que os sonhos

O Brasil é um país desmemoriado e desatento aos seus reais valores. Não por culpa dos brasileiros, mas por causa da grande omissão do Estado na preservação da nossa arte e artistas identitários.

Como citei no artigo anterior, é assustador constatar que hoje, na cidade do Rio, berço da Bossa Nova, uma imensa maioria dos seus adolescentes não saiba mais quem foi Tom Jobim, este extraordinário compositor que provocou uma revolução estética e harmônica na MPB e que, mais que nunca, é ouvido e admirado aqui no primeiro mundo.

Além da omissão flagrante do Estado, há o laxismo de deixar a televisão aberta, (hoje única fonte de entretenimento para a imensa maioria dos brasileiros), ditar suas próprias regras sob o jugo indulgente da grana, sem oferecer, ainda que seja concessão do Estado, nenhuma contra partida de interesse público.

Essa besta sem cabresto em que se transformou a televisão aberta no Brasil cria falsos valores, beneficiando principalmente nas suas emissões e seleção musical, o que há pior e mais barato, em desfavor do talento. Afinal, talento custa caro.

Essa coluna tenta, de forma muito tímida e impotente, fazer memória de grandes talentos que mereceriam ser cultivados e preservados. Não somente na música, mas também da nossa grande dramaturgia, soterrada na televisão pelo feijão com arroz das novelas. Quem ainda se lembra de Cacilda Becker, Zbigniew Ziembinski, Maria Delacosta, Paulo Autran, Procópio Ferreira, Bibi Ferreira, Gianni Ratto, Guarnieri e Vianninha, Flávio Migliaccio, Riva Nimitz, e de tantos outro gigantes da cena brasileira?

Mais recentemente, nomes como Aderbal Freire Filho, Augusto Boal, Marilia Pêra, Eva Wilma, Tônia Carrero, Domingos de Oliveira e Milton Gonçalves começam já a ser aspirados pelo mesmo redemoinho do esquecimento. Obcecada e intoxicada pelas novelas, a televisão aberta esqueceu-se do grande teatro e dele seria um veículo extraordinário de divulgação.

E é por isso mesmo que hoje eu gostaria de falar um pouco de um grande sacerdote do teatro brasileiro, o diretor e ator Sérgio Britto (1923 – 2011). Personalidade, influência, carreira, repertório, paixão, destino, Sérgio era um embriagado da cena: “o Teatro é o mais antigo dos moribundos”, dizia.

Bastavam poucos minutos de papo para que aquele homem de barba e cabelo brancos se transformasse num radiante e contagiante menino. Sérgio jamais envelheceu.

Considerado um dos maiores atores do país, Sérgio Britto foi o diretor de ‘Ilusões Perdidas’, primeira telenovela produzida e exibida pela Globo. Na Tupi, Britto idealizou e dirigiu o Grande Teatro Tupi, provando que qualidade não é incompatível com audiência.

Exibido ao vivo, nas noites de segundas-feiras, o teleteatro revelou para público nomes como Fernanda Montenegro, Nathalia Timberg e Ítalo Rossi.

Em 1959, Sérgio funda no Rio de Janeiro a companhia Teatro dos Sete, junto com Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Ítalo Rossi e o diretor italiano Gianni Ratto. A estréia foi no Teatro Municipal do Rio com o espetáculo ‘O Mambembe’, de Artur Azevedo. Depois, no Teatro dos Quatro na Gávea, convidado por Sérgio, Mimina Rovena e Paulo Mamede, eu pude fazer uma das minhas primeiras exposições individuais no Rio de Janeiro.

Por volta de 2001, Sérgio veio à minha casa no Rio entrevistar-me para o programa Arte com Sérgio Britto, na TVE. Depois de cinco minutos com Sérgio, o que era para ser uma entrevista transformou-se num inesquecível bate-papo com esse mágico feiticeiro. Sérgio conhecia tudo, pintura, cinema, ópera, ballet, poesia, música. Isso sem falar da sua trajetória notável na dramaturgia. Um verdadeiro uomo universalis. Foi, sem a menor sombra de dúvida, uma das melhores entrevistas que dei em minha vida.

Sergio Britto e Antonio Veronese (Foto: Acervo pessoal)

Uma vez instalada a minha mencionada exposição no Teatro dos Quatro, Sérgio veio me ver e guardo ainda com grande emoção sua reação e o elogio que Sérgio me fez, quando nem eu mesmo em mim acreditava. Foi a primeira pessoa que me pôs a mão no ombro e perguntou, com aquele olhar incendiado: “foi você que fez isso?”. A partir de Sérgio, eu me disse: “meu Deus, talvez eu seja mesmo um pintor”. Devo isso a ele.

Outras características de Sérgio eram a compaixão e a humildade. Uma vez ele me convidou para acompanhar os ensaios de um musical sobre os tempos do rádio, naquele teatro da Fonte da Saudade. Cheguei, sentei-me no fundo da sala e pude observá-lo em pleno exercício de dirigir: uma troca afetuosa, densa e sofisticadíssima com o seu elenco, um momento em que o mago Sérgio revelava-se por inteiro.

Em outra ocasião, ele ensaiava no pequenino teatro da galeria Cândido Mendes em Ipanema, dirigido pelo grande Domingos de Oliveira, o espetáculo Sérgio 80.

Pela manhã ele me ligou: “Antonio, vem acompanhar o ensaio”. Cheguei um pouco atrasado e sentei-me no fundo da minúscula arena. Além de Domingos e Sérgio, somente eu na semi-escura platéia! Procurei passar o mais desapercebidamente possível para não incomodar o trabalho dos dois.

No entanto, qual não foi minha surpresa quando Sérgio, depois de meia hora de ensaio, vira a cabeça pra trás e pergunta-me de supetão: “Antonio, tá bom ou tá ruim?”. Imaginem eu, chamado a dar pitaco numa direção de Domingos de Oliveira?

É por isso e tanto mais que gostaria que lembrássemos um pouco de Sérgio, neste pequeno artigo de hoje. Sei que, onde quer que esteja, o grande Sérgio Britto deve estar ensaiando um novo e maravilhoso espetáculo. Sérgio foi a prova definitiva de que “we are such stuff as dreams are made on”.

Foto: Robert Zuckerman

*Antonio Veronese é um pintor ítalo-brasileiro que se divide entre o Brasil e a França. É autor de obras como ‘Tensão no Campo’ ( Congresso Nacional); ‘Famine’ (FAO, Roma) e ‘Save the Children’ (símbolo dos 50 anos das Nações Unidas). Com mais de 70 exposições individuais em todo o mundo, Veronese é considerado pela crítica francesa como “um dos dez pintores vivos que já deixaram seus rastros na história da Arte”.

Antonio Veronese

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