Erika Hilton ousa. E esse é, talvez, seu maior “pecado” aos olhos de parte da elite política e midiática: ser uma mulher trans, preta, periférica e deputada federal — eleita pelo PSol com mais de 250 mil votos em São Paulo — que se recusa a ocupar a política de forma envergonhada ou silenciada.
Nos últimos dias, reportagens sugeriram que Erika teria contratado maquiadores com verbas da Câmara e usado recursos públicos para procedimentos estéticos. Ela nega.
Afirma que não houve contratação com esse fim, que tem sido perseguida politicamente e que as cirurgias no nariz foram pagas com recursos próprios — exceto uma, com ressarcimento parcial autorizado pela Casa, com base em documentação médica.
Se houve uso indevido, que se apure com rigor — como deve ocorrer com qualquer parlamentar. Mas é preciso perguntar: os profissionais citados nas reportagens estavam exclusivamente a serviço da estética, da beleza? Ou faziam parte de uma equipe audiovisual?
O debate é legítimo. O julgamento precipitado, não.
Por trás do alvoroço moral, parece haver algo maior: o incômodo de ver Erika onde muitos prefeririam não vê-la. Sua presença, sua estética, sua trajetória — tudo nela desafia o status quo.
Ela não apenas ocupa uma cadeira no Congresso. Ela simboliza resistência, reconfigura padrões, quebra moldes.
A reação desproporcional também revela o quanto seguimos medindo corpos dissidentes com régua seletiva. Gastos muito mais vultosos de parlamentares tradicionais raramente causam tamanho escândalo. Já a maquiagem de uma mulher trans provoca manchete e indignação.
Não bastasse isso, Erika foi criticada por não estar na Parada LGBTQIAPN+ de São Paulo — a maior da América Latina. O motivo? Participava de uma conferência sobre diversidade em Lisboa e, no mesmo feriado, foi a Paris, onde sequer sonharia estar e até assistir Beyoncé pessoalmente, sua maior referência. E isso pode ser pecado?
O que está em jogo não é só a legalidade, mas a legitimidade da sua existência nos espaços de poder. Por isso, suspeitas viram sentenças. Suspeitas frágeis, amplificadas por julgamentos públicos.
Mas o que poucos admitem é que esses ataques tentam minar o que ela representa para tantos brasileiros invisibilizados. Erika não é só parlamentar — é símbolo, é ruptura. E, como toda ruptura, incomoda quem quer manter tudo como sempre foi.
Enquanto isso, personagens com fichas corridas e extensas — cassados, condenados, presos e protagonistas de desvios milionários — continuam circulando por Brasília como se nada tivesse acontecido. Frequentam salões e almoços com os mesmos que hoje se escandalizam com uma base de maquiagem de Hilton.
A diferença? Eles sabem onde se esconder. Erika, não. Ela aparece. Fala alto. Chora ao ver sua diva em Paris, onde nunca imaginou pisar. Anda de cabeça erguida.
E isso, só isso, já é demais para quem deseja ver corpos como o dela nos porões do sistema.
“Não serei empurrada de volta para o escuro”, declarou. E com razão. Até que se prove o contrário, ela segue representando quem nunca teve voz. E o faz sem pedir licença.
Este não é um espaço que passa pano. É para se apurar, para se investigar — com a garantia do direito à defesa.
Mas que também se reconheça: o brilho de Erika incomoda. Sua altivez, sua força e sua liberdade são insuportáveis para um conservadorismo que só tolera o igual.
Se ela errou, que responda — como qualquer parlamentar. Mas, até agora, o que se vê não é um escândalo. É um incômodo.
E não é sobre verba pública. É sobre visibilidade.
Erika incomoda porque ousou existir onde muitos preferiam que ela jamais chegasse. E ela chegou.
Não será invisível. E, como a história já sinaliza, também não estará sozinha.