Ao se caminhar pelas calçadas do Plano Piloto de Brasília, conseguimos sentir a grandeza da cidade, a importância das escalas, da harmonia do desenho urbano, da uniformidade do conjunto construído: sem dúvida nenhuma, entendemos a natureza poética de uma cidade planejada para ter visuais amplos e impactantes, perspectivas de tirar o fôlego.
Mas da mesma maneira que percebemos este equilíbrio sutil, quase incidental às vezes, percebemos também os vazios urbanos. E como a natureza da mente humana é ser fértil em criatividade, seguimos imaginando o que poderia existir onde hoje existem estes espaços residuais – as lacunas urbanas.
Para a arquitetura existir – o edifício representativo – é preciso entender a “moldura”, o vazio ao redor, que valoriza ainda mais o objeto construído. Sabemos que as normas de patrimônio exigem a criação de uma área no entorno deste bem que sirva de “amortecimento” diante de possíveis danos que o crescimento das cidades possa causar sobre ele – este instrumento é chamado de “ambiência” na inserção dos bens de valor patrimonial dentro do tecido urbano.
Quando pensamos em Ouro Preto, Minas Gerais ou Olinda, Pernambuco, percebemos que este instrumento se torna ainda mais importante, porque o conjunto arquitetônico é muito homogêneo. Núcleos urbanos que têm características barrocas, renascentistas, árabes, tem um balanço ainda mais delicado, porque qualquer interferência pode ser muito danosa à coerência do conjunto – e ferir o “espírito do lugar”.
Mas e quando pensamos em um conjunto arquitetônico como Brasília, cidade planejada do zero, com um macrozoneamento muito característico e pensado dentro de todas as premissas modernistas tidas como revolucionárias à época, vemos uma questão mais complexa. A cidade e sua ambiência são planejadas de uma maneira ampla, macro, com seus usos muito rígidos e definidos. É um planejamento em grande escala que define a identidade de Brasília.
Mas vamos pensar nos indivíduos que a cidade abriga, e uma pequena escala, a escala humana – como tornar este grande arranjo urbano mais e mais amigável e compreensível para as pessoas, como fazê-lo crescer e se adaptar de maneira dinâmica Como habitar em um lugar que pode – e deve- se transformar positivamente e continuamente, buscando qualidade de vida e segurança para seus habitantes? E como fazê-lo dentro de normas, regras, leis, decretos, que vão ser aplicados agora e nos próximos anos?
Esta pergunta é o questionamento da vez, em tempos de PPCUB e da ampla e muito bem vinda participação popular nas questões relativas ao planejamento urbano e ao futuro da nossa cidade. Onde queremos viver e como queremos viver? Qual o legado que vamos deixar para os nossos filhos, como fazer a cidade ser preservada em suas escalas primordiais, em sua relação da cidade com a escala humana ao mesmo tempo que queremos um centro urbano inclusivo, democrático, aonde podemos maximizar a qualidade de vida e minimizar o consumo de recursos?
Vamos pensar no trajeto dos habitantes das superquadras, quando vão no comércio local à noite
Alguns destes comércios são notadamente especializados, funcionam predominantemente durante o dia. Atravessando algumas ruas comerciais da Asa Sul, por exemplo, rumo aos prédios residenciais, nos deparamos com passagens para as áreas residenciais que são becos escuros, sem iluminação, bastante intimidadores, entre os blocos de lojas. Passamos por um espaço que é descuidado, “fundo de alguma coisa”, com lixo acumulado e falta de iluminação. Quem se sente seguro em um ambiente assim?
Outro ótimo exemplo é a avenida W3 Sul. Quem passa por ali não pode deixar de sentir uma sensação de desolação, quase tristeza, pela lembrança do que já existiu em contraponto com o excesso de lojas fechadas e espaços abandonados. Claro que pensamos em como “re-funcionalizar” as atividades ao longo da rua, trazendo de volta a vida e os significados para uma avenida tão importante e querida para a cidade. Este processo de transformação é complexo porque envolve diversidade econômica, social, e envolve mudanças que criem outras funções e atividades para a área, de maneira muito estrutural. Ela é uma avenida de alta centralidade, vamos sempre nos recordar disso.
Pode-se então dizer que “um percurso transitável e habitável é aquele que permite ao seu utente a possibilidade de compreendê-lo, de utilizá-lo e de ver refletido, em seus aspectos físicos, as suas experiências e a sua cultura” (Tuan,1983). Sendo assim um espaço urbano ótimo é interativo entre o percurso e o pedestre, provocando sensações, sendo legível e compreensível de maneira clara e objetiva. É interessante, tem vida e elementos que nos acolhem e despertam nossa atenção.
Tudo isso nos faz querer repensar os espaços residuais, e onde isto é uma falta no detalhe no desenho urbano da cidade. Pensar de maneira articulada uma pequena área, o desenho das ruas, calçadas, pontes, mobilidade, fluxo de pessoas, parques, praças, locais de trabalho e de lazer – a compatibilização entre a forma edificada e os espaços livres. Isso serve também para atender as demandas urbanas coletivas, por que atender o morador – o pedestre – tinha que ser o essencial.
Sabemos que Brasília foi pensada para o carro, para famílias que tinham em média pai, mãe, 4 filhos, patriarcal, conservadora e tradicional. Era chique se deslocar pela cidade em carrão estilo americano, tipo Landau. Apenas 30% da população mundial residia em área urbana e a visão da vida moderna era diretamente ligada aos avanços da indústria automobilística e a setorização das atividades.
A última pesquisa PDAD – Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios, elaborada pelo IPEDF, mostra o perfil atual do brasiliense na cidade – dentro dos domicílios, o arranjo “casal sem filhos” foi o mais observado, em 32,3% dos domicílios; a população predominante na Asa Sul tem 75 anos ou mais (sendo 66,7% mulheres). Casais com 3 filhos ou mais representam somente 1,8% dos arranjos familiares atualmente. A sociedade mudou, e com isso, as necessidades, as consciências, e as demandas em relação aos espaços públicos, ao nosso entorno imediato.
Escutamos constantemente o quanto é agradável andar a pé, criar uma sensação de independência do carro, olhar as árvores, o céu, as lojas, a vida ao redor, reconhecer as pessoas através de uma proximidade maior, desenvolver relações interpessoais.
Para esta população, ressignificar um espaço esquecido, uma esquina desocupada, becos escuros, pode resultar em qualidade de vida e uma oportunidade de vivenciar a cidade de maneira muito mais abrangente e inclusiva.
Para a cidade, ampliar os espaços existentes com novos usos e acrescentar novas atividades e programas em áreas que podem ser mais povoadas, ocupando terrenos residuais, pode resultar em uma ativação positiva do tecido urbano, trazendo segurança e possibilitando maior inventividade, criatividade nos espaços construídos – de maneira responsável e respeitosa com a cidade.
*Duda Almeida é arquiteta e urbanista especializada em Desenho de Arquitetura Assistido por Computador pela UnB, com curso em Gestão de Projetos pela FGV e Mestre na área de concentração Urbanismo – Cidade e Habitação. Atualmente é sócia-proprietária do escritório Reis Arquitetura aqui na capital, mas já atuou como docente nas áreas de Teoria e História e Projeto de Arquitetura e Urbanismo e está se aventurando como autora de livros, tendo lançado recentemente a obra Desenho Urbano e Envelhecimento Populacional