“…Como é belo ser criança
E viver na inocência
Se nesta bela existência
Jamais houvesse mudança
Seria mais esperança
Para uma vida futura
Tão repleta de doçura
Nos braços da mãe sorrindo
A cada instante sentindo
Um beijo com mais ternura…”
(Trecho do poema Como é belo ser criança, de Arnaldo Júlio Barbosa, escrito em 13/12/1979)
Sob o olhar sossegado de mais de um século de vida, seu Arnaldo observa três alunos brincarem no pátio da escola e se lembra dos versos que escreveu 44 anos atrás. Não se contém. Chama as crianças para perto e começa a recitar a estrofe decorada, que, apesar de breve, faz o tempo parar. Os meninos, ainda na primeira década de idade, se concentram para ouvir cada palavra entoada sem pressa pelo senhor de 105 anos. Todos ao redor se transformam em espectadores. A mensagem é profunda, a cena também. A declamação finaliza com aplausos dos pequenos estudantes. O poeta sorri e volta ao seu estado silencioso e contemplativo.
O encontro aconteceu na Escola Parque 308 Sul, a primeira do modelo em Brasília, inaugurada junto com a capital, em 1960. Mas seu Arnaldo já havia estado ali antes mesmo dos portões serem abertos à população. Em 1959, quando chegou ao PlanArnaldo Júlio Barbosa: a nova mocidadealto Central, trabalhou como pedreiro na obra do prédio modernista e em várias outras construções. Retornar à escola mais de sessenta anos depois causou certa estranheza, afinal, não era mais cercada por “terra, mato e obras”, como descreveu o pioneiro. Surpreso com a evolução dos arredores que compõem a chamada Quadra Modelo, a SQS 308 Sul, brincou ao analisar a paisagem que no passado cruzava de carroça: “ainda estamos no Brasil? Parece que tô vendo um filme!”.
Do Rio Grande do Norte…
Arnaldo Júlio Barbosa nasceu em 7 de novembro de 1918, no município de Pedro Avelino, no Rio Grande do Norte. Filho de Luiz Francisco Barbosa e Avelina Zizuina Barbosa, cresceu sob os cuidados da mãe afetiva, Carlota de Araújo Linhares. Comadre de dona Avelina, “Cacá” assumiu a criação de Arnaldo quando ele ainda era bebê e a mãe biológica contraiu “bexiga”, doença hoje conhecida como varíola. O filho seguiu com a família adotiva mesmo após a recuperação de Avelina, mas manteve contato com os parentes de sangue.
O potiguar concluiu o ensino primário e assumiu o papel de “homem da casa” logo cedo, aos 12 anos de idade, quando o pai de Cacá faleceu. Além de toda a gestão da casa, herdou o manejo da roça e do gado. Por volta dos 18 anos casou-se com Francisca Dalva de Araújo, o seu grande amor e inspiração, com quem construiria uma família frutífera, começando por 14 filhos. O casal compartilhou 73 anos de vida, até Francisca falecer, em 2010.
…para Brasília
Motivado pelo filho mais velho, que já trabalhava onde seria a nova capital federal e teria conseguido um emprego para o pai, Arnaldo acomodou a família no Nordeste e em 12 de julho de 1959, aos 40 anos, chegou à terra descrita pelo primogênito como cheia de oportunidades. “Vim de carreira”, lembra, bem-humorado. Desembarcou na W3 e foi para seu alojamento, localizado ao lado da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima. “No mesmo dia já assinaram a minha carteira e comecei a trabalhar. Todo mês eu mandava dinheiro para minha esposa. Fui trazendo alguns filhos por vez e, três anos depois, busquei a família toda. Aqui estamos até hoje”, conta.
A família unida era tão grande que chegou a virar time de futebol na época. A equipe foi batizada de Irmandade, já que era formada somente por filhos do seu Arnaldo, o técnico. “Éramos muitos, mas hoje já tem muito mais gente espalhada por aí”, complementa. Além dos filhos, são 48 netos, 85 bisnetos e 20 tataranetos – até agora.
O pioneiro trabalhou por 20 anos na Sociedade de Habitação de Interesse Social (SHIS), substituída pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Distrito Federal (CODHAB), órgão responsável pelos programas habitacionais do governo. Antes de se aposentar pela empresa, teve suas duas décadas de serviços prestados reconhecidos e homenageados com uma medalha de honra ao mérito do Governo do Distrito Federal.
O artista
Todavia, resta ainda um ofício do qual não consegue pedir as contas: o de artista. Repentista, cordelista, autor, compositor e intérprete, Arnaldo foi acompanhado pela música e pela literatura por toda a vida. Sempre curioso e bom ouvinte, aprendeu a rimar ainda criança, sozinho. “Eu ia nas feiras da cidade com a minha mãe e ficava observando os repentistas. Me encostava nas bancas de cordel, ficava ouvindo os cantadores e folheando os livretinhos”, recorda. Ele levava os folhetos para casa, lia freneticamente e decorava. Não demorou para que começasse a estudar novas palavras em livros e dicionários a fim de crescer o seu repertório para o repente, e eternizar algumas de suas rimas em textos poéticos.
O que era passatempo virou trabalho e por muitas décadas se apresentou como cantador profissional em bares. Como autor, escreveu inúmeras poesias de próprio punho e, quando finalmente ficava satisfeito com as palavras escolhidas, as passava para a máquina de escrever. Guardou todo o trabalho cuidadosamente ao longo de todos esses anos, inclusive o velho instrumento de datilografia. Em 2023, no ano em que completou o seu 105º aniversário, Arnaldo contou com o apoio da família para realizar um sonho: lançar o seu primeiro livro.
Manuscrito originalmente em 1947, A Jovem Margarida e as Proezas do Amor traz um romance pulsante contado em 143 estrofes de literatura de cordel. Segundo o autor, e seus leitores, a narrativa poderia tranquilamente ser inspiração para uma grande novela de TV – e aí seria um novo sonho realizado.
Setenta e seis anos depois de escrever a história de Margarida, disposto a apresentá-la ao mundo, Arnaldo teve um estande na 37ª Feira do Livro de Brasília, onde se instalou com seus exemplares e a velha máquina de escrever, e marcou presença todos os dias, do acender ao apagar das luzes. Lá, transformou-se em “vô” de todos os visitantes, distribuiu autógrafos, recitou, improvisou, cantou, brincou, emocionou e inspirou famílias, estudantes, artistas e autoridades que passaram pelo local.
Cansado? Que nada. Mesmo com algumas limitações decorrentes do avanço da idade, todos os frutos que surgem com a nova conquista trazem ainda mais empolgação para a vida do centenário e sua família. “O que estou vivendo me alegra. É quase um estado de mocidade, uma infância”, descreve. Aos 105 anos, Arnaldo aprecia o gosto do presente e anseia pelas surpresas do amanhã: “abriu-se uma nova estrada”.
*Matéria escrita por Larissa Duarte para a Revista GPS 38