Desde o fim do mês passado, a nova sede da Central Única das Favelas (Cufa) no Complexo da Penha – região que reúne 13 favelas na zona norte do Rio de Janeiro – é uma alternativa para atividades de lazer para a população, incluindo as crianças, que encontram lá um espaço para brincadeiras.
No entanto, no começo desta semana, frequentar o local não era mais uma coisa trivial. O motivo é que, na segunda-feira (9), começou uma megaoperação da polícia à procura de criminosos, o que desencoraja pais e responsáveis de sair de casa com os filhos. Assim, o dia da brincadeira ficou para outra ocasião.
Em outra parte da cidade, também na zona norte, o motorista Anderson Vargas encontra dificuldades para levar os filhos, de 2 e 7 anos, para brincar. Ele conta que em uma das pracinhas perto de casa, “os brinquedos são precários, muita das vezes quebrados”. Em outra, “cachorros estão sempre na praça, roubando espaço de brincadeira das crianças”.
Declaração
Os dois exemplos, mais do que uma falta de oportunidade, são uma violação de um direito garantido a todas as crianças, o de brincar. O Artigo 16 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, diz que a criança e o adolescente têm direito de “brincar, praticar esportes e divertir-se“.
Indo além, a Constituição de 1988, em seu Artigo 227, impõe que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer”.
A garantia do direito de a criança brincar está expressa também na Declaração Universal dos Direitos da Criança, da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1959. O Princípio 7º determina que “a criança terá ampla oportunidade para brincar e divertir-se”.
Saúde e desenvolvimento
Não é à toa que esse direito está cravado na legislação. Neste Dia das Crianças (12), a médica Evelyn Eisenstein, coordenadora do grupo de trabalho em Saúde Digital da Sociedade Brasileira de Pediatria, explica que “brincadeira é um direito de saúde“.
“A criança desenvolve as suas habilidades, não só de coordenação e autonomia, mas as habilidades do desenvolvimento neuropsicomotor. Ela vai se tornando independente à medida que aprende a correr, pular, saltar, brincar de roda, brincar em uma equipe, com os amigos, aprende a ganhar a perder”, explicou. “Ela ativa os mecanismos hormonais. A brincadeira é um elemento saudável, inclusive da saúde mental das crianças e adolescentes.”
Brincadeira de criança
A coordenadora da secretaria executiva da ONG Aliança pela Infância, Leticia Zero, complementa que, ao brincar, a criança aprende a lidar com frustações, tolerância e diversidade. “O brincar é a expressão mais genuína”, diz.
A Aliança pela infância foi criada para fazer esse direito se espalhar por várias partes do país e classes sociais.
Uma das iniciativas é a difusão da Semana da Infância e Cultura de Paz, iniciada na segunda-feira (9) e que vai até o domingo (15).
Uma pesquisa divulgada terça-feira (10) pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) aponta que 60% das crianças e adolescentes brasileiros tinham alguma privação de direitos, como moradia, saneamento, educação e renda. Isso representa quase 32 milhões de pessoas.
Consequências
“Criança que não brinca é uma criança doente”, compara Evelyn Eisenstein, da Sociedade de Pediatria. “Ela fica deprimida, isolada, vai ficando sedentária.” Prova de que a necessidade de brincar é tão essencial é que nos hospitais há espaço para brinquedotecas, cita a médica. O mesmo vale para as escolas. Ao mesmo tempo em que dão o ensino obrigatório, oferecem o tempo que, para muitas crianças, é a melhor coisa do dia de aula: a hora do recreio.
“Quando a criança tem o acesso ao brincar prejudicado ou negado, ela deixa de se desenvolver”, acrescenta Leticia Zero.
Anderson percebe claramente as mudanças no comportamento dos filhos quando não brincam como deveriam. Ele nota que os filhos estranham a interação com outras crianças, ficam agitadas e dormem mal.
“Seria ótimo se tivesse um lugar onde eles pudessem gastar energia e fazer atividades com outras crianças. Quando eles fazem isso, eles dormem melhor, ficam realizados, com as carinhas de muito felizes”, afirma o pai.
Pequenas e simples atividades cotidianas também devem ser vistas pelos pais e responsáveis como oportunidades de brincadeiras para as crianças, segundo a representante da ONG. “Entender que brincar não é uma atividade que só que vai acontecer em um período curto, específico”, ressalta.
“Qualquer atividade que a gente faça, seja levando a criança para caminhar, para ir na padaria, ela vai querer subir e descer das rampinhas, pular degraus”, exemplifica. É preciso, de acordo com Leticia, entender que criança não se comporta como adulto. “A criança precisa poder se expressar livremente o tempo todo”, diz. “Os adultos precisam entender essa importância do brincar. É preciso reencantar o olhar do adulto para a criança.”
Recomendações
Apesar da importância do ato de brincar, pais e responsáveis precisam saber impor limites quando se trata de entretenimento por meio de telas, adverte a pediatra Evelyn Eisenstein.
“Uso excessivo precoce e prolongado dos videogames, televisão e qualquer tipo de tela é prejudicial à saúde das crianças e adolescentes. Ela fica fazendo uma distração passiva”, alerta.
Essa “epidemia” das telas começa a ser tratada por políticas públicas.
Na terça-feira (10), o governo federal lançou uma consulta pública para a elaboração de um guia com orientações para o uso de telas e dispositivos digitais por crianças e adolescentes. A consulta é aberta a toda a sociedade e ficará disponível por 45 dias na plataforma Participa + Brasil.
Outro cuidado que a médica da SBP orienta é em relação a classificação etária e indicativa de brinquedos e fontes de entretenimento como filmes e vídeos. “As brincadeiras devem ser de acordo com a maturidade de cada criança”, orienta.
A adequação dos brinquedos em pracinhas públicas é mais um ponto que deve ser mais adequado, de acordo com Leticia Zero. “Parques estão acessíveis para crianças a partir de três, quatro anos. Onde ficam os bebês, onde brincam as crianças com menos de três anos?”, pergunta. “Qualificar os espaços para as crianças pequenas e para os bebês também é muito importante”.
Leticia defende que o tempo da infância seja respeitado. “A criança vai ser criança por 12 anos. É um tempo muito curto e ele é fundamental. Os processos de desenvolvimento que acontecem durante esse período são fundamentais para dignidade dessa pessoa.”
Para ela, uma lição deve ser aprendida com as comunidades indígenas. “Um indígena nunca pergunta o que a criança vai ser quando crescer, porque ele sabe que a criança já é tudo que ela precisa ser agora. Então a gente precisa garantir os direitos da criança. Ela precisa poder exercer a sua infância agora.”