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Antonio Veronese: vinte e dois anos depois, nada mudou

Na coluna de hoje, Veronese conta de uma indisposição com o então governador do Rio, Anthony Garotinho
Anthony Garotinho (Foto: Reprodução/Agência Brasília)

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Em 2002, se não me falha a memória, tive uma pendenga com o então governador do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho. Explico: durante seu sofrível mandato à frente do Palácio Guanabara, Garotinho prometeu diversas vezes um plano para proteger crianças que dormissem na rua. E não cumpriu.

Durante 16 anos, eu trabalhei com essas crianças e com menores infratores recolhidos a institutos educacionais, no Rio de Janeiro e em Brasília e, por isso, sabia dos riscos a que incorre uma criança que passa a noite ao relento.

Em decorrência dessa omissão, critiquei o ex-governador em sucessivos artigos publicados em ‘O Globo’ e no ‘Jornal do Brasil’, e Garotinho esperava uma oportunidade de retaliar. A oportunidade veio quando publiquei no ‘O Globo’ um grande artigo com o título de “Procura-se sócio para Boca de Fumo no Leblon”.

Vocês podem imaginar a reação a um artigo como esse. Nele eu propunha, entre outras coisas, entregar a Garotinho o endereço de 50 pontos de venda de drogas no Rio de Janeiro. Isso mesmo. E a reação do ex-governador não tardou. No dia seguinte, fui intimado pelo então chefe da Policia Civil no Rio, Álvaro Lins, a prestar depoimento na antiga sede do DOPS, na Rua da Relação, no centro do Rio. Justamente no tenebroso teatro de sombrio passado e vergonhosa memória.

Surpreendido pela bizarra interpelação, liguei para o insígne jurista e advogado Técio Lins e Silva, conhecido defensor dos direitos humanos, e disse-lhe:
“Técio, o Garotinho mandou o Álvaro Lins me chamar no antigo Dops. O que eu faço?” . Dr. Técio, sem impressionar-se com a situação, perguntou simplesmente:

– Quando?
– Amanhã, às duas da tarde, respondi.
-Então vem cá pro meu escritório amanhã ao meio dia.

Às doze em ponto desembarquei no elegante escritório do doutor Técio na avenida Rio Branco, com seu belo piano de cauda. Técio disse-me “não se preocupe, eu vou com você lá. Mas primeiro vamos papear”, e papeamos até às dez para as duas. Disse-lhe , então: “Técio, está na hora, temos que ir!”,  e ele respondeu: “ainda não, deixa primeiro a imprensa toda chegar lá”.

Às 14,30 desembarcamos do taxi no DOPS, na Rua da Relação. Toda a imprensa do Rio estava à porta, conforme previsto por Técio. No nosso percurso, até a sala de Álvaro Lins no segundo andar, fomos perseguidos por um batalhão de jornalistas, fazendo um alvoroço. Um deles chegou a me perguntar: “Veronese, você vai virar traficante?”.

Álvaro Lins recebeu-nos cordialmente, mas desculpou-se dizendo ao Técio que , se eu sabia os endereços de 50 pontos de venda de drogas no Rio, tinha que revelá-los à polícia.

O que todo mundo parecia ter-se esquecido é que, duas semanas antes, o nosso bom e velho Jornal do Brasil havia publicado, em matéria de capa, os endereços de exatamente cinquenta pontos do tráfico no Rio de Janeiro. Diante do pedido de Álvaro Lins, abri sobre sua mesa a edição do JB e disse-lhe simplesmente: “Dr. delegado, o governador Garotinho anda tão preocupado com a reeleição que não deve ter tempo de ler a grande imprensa carioca. Aqui estão os endereços de cinquenta pontos de droga no Rio de Janeiro”.

No ‘Jornal do Brasil’ aberto sobre a mesa do delegado estavam elencados, um a um, os cinquenta pontos de drogas mencionados por mim no artigo ‘Procura-se sócio para boca de fumo no Leblon’. Foi uma gargalhada geral. Acabava em riso a minha primeira e única inquisição para depor na polícia, especialmente marcante por ter se dado num dos porões da ditadura.

Álvaro Lins cordialmente nos levou, a Técio e a mim, até a porta da rua e levamos quase uma hora para nos desvencilhar das perguntas da imprensa. Publico abaixo a íntegra do meu artigo em ‘O Globo’ que provocou tanta celeuma. Quando vocês o lerem, tudo entenderão.

 

Procura-se sócio para boca de fumo no Leblon

Nesses tempos de desemprego e dificuldades, tive uma ideia que pode ser muito lucrativa e estou procurando sócios para a empreitada; quero montar uma grande distribuição de entorpecentes na zona sul do Rio de Janeiro.

Não em cima de um morro mas cá embaixo, na parte maravilhosa da cidade maravilhosa. De preferência em uma rua nobre, onde residam pessoas de alto poder aquisitivo. Estou pensando na rua Carlos Góis, no Leblon, naquele quarteirão entre a San Martin e a Ataulfo de Paiva. A presença dos cinemas e do Cliper garantem ali uma grande afluência de público. Lucro certo.

Uma vez escolhida a localização da nova ‘boca’, o resto é fácil. Nas duas esquinas próximas vou postar homens armados de fuzis de guerra. Afinal, se o endereço é rentável, é previsível que grupos rivais tentem “tomar” o ponto.

Espalhados pela vizinhança atuarão meninos fogueteiros, especialmente treinados para avisar se a polícia aparecer por lá. Naquela galeria comercial aos fundos dos cinemas, embaixo do prédio onde vive o inesquecível João Gilberto, vou instalar o depósito do pó e o arsenal, armamento pesado pra garantir a segurança da empreitada.

Para a distribuição da “mercadoria” vou empregar meninos na faixa etária de oito a dezessete anos, residentes na própria área. Eles podem ser facilmente cooptados às portas dos Colégios Santo Agostinho e Saint Patrick. Serão adestrados e bem armados, devendo obediência cega ao chefe que, neste caso, serei eu.

Seus rendimentos, vou assegurar, serão em muitas vezes maiores do que as mesadas que recebem dos pais; uma forma eficiente de transferir o pátrio poder para o chefe da “boca”, quer dizer, do negócio! Ali vou mandar eu, com mão de ferro, o novo chefe da Carlos Gois e quem ousar me contrariar será sumariamente eliminado.

Como decorrência natural desse poder, terei acesso irrestrito a todas as mulheres do quarteirão, independentemente se são casadas ou solteiras, maiores ou menores. Como contrapartida, distribuirei dez por cento do “faturamento” aos vizinhos, dedicando alguma atenção aos velhos e doentes da “comunidade”. Assistencialismo de ocasião.

Se o pessoal do 23° Batalhão da PM quiser atrapalhar o negócio, tentarei subornar o seu probo comandante, propondo um pró-labore adicional à sua corajosa tropa que sobrevive com salários miseráveis. Sem esquecer o quinhão da milícia que não vai tardar a “aparecer”… Sem problema! Se este tipo de comércio funciona e dá lucro nas favelas miseráveis da cidade, imaginem no Leblon. Vou ficar rico.

A você, que já está preocupado com a desvalorização dos imóveis da Carlos Gois, aviso que esses meus planos são, evidentemente, somente uma provocação. Imaginem o primeiro telefonema que a Policia Militar receberia, cinco minutos após o meu início de atividades:

– Aqui é o doutor fulano de tal. Estão vendendo cocaína na porta da minha casa e eu EXIJO providências imediatas!

Edições extraordinárias, no Rádio e na TV, revelariam que um grupo de traficantes cometeu a extrema ousadia de instalar uma distribuição de entorpecentes em plena zona sul, no seio de uma comunidade respeitável onde vivem doutores, juízes, desembargadores. Em menos de vinte minutos haveria uma verdadeira blitzkrieg no Leblon: polícias militar, civil, federal, do exército…

O secretário de segurança pública seria caçado pela imprensa e, ao vivo, em sucessivas edições extraordinárias, asseguraria todas as medidas imediatas de repressão, devolvendo rapidamente a paz à nossa respeitável Carlos Gois e poupando, por consequência, suas adoráveis crianças do trágico destino de transformarem-se em vapores do tráfico e engrossar a aviltante cifra de 600 menores assassinados por ano somente na cidade maravilhosa.

Resta uma singela pergunta: e por que no Morro do Alemão, no Vidigal, na Rocinha, no São Carlos, no Borel, no Dona Marta, no Esqueleto, na Mineira, na Maré, no Encantado, no Pavão/Pavãozinho, no Cantagalo e em tantas outras comunidades carentes, pode? Comunidades onde vivem trabalhadores, sítios urbanos com jurisdição própria onde o Estado covardemente está ausente. Por que onde pobre mora pode? Por que a humilde população que reside nesses endereços, entre ela a honestíssima vovó vizinha da boca de fumo que vê seu neto ser irremediavelmente cooptado pelos traficantes, não pode simplesmente chamar a polícia?

Se os senhores governador e ministro da justiça quiserem, eu posso levantar 50 endereços nos quais, hoje à noite, o tráfico de entorpecentes vai funcionar a céu aberto, sem os inconvenientes da charmosíma Carlos Gois, no Leblon. O resto é conversa fiada e pose “solene” de um governador que fala muito de Deus mas que é omisso como o diabo. Afinal, como nos ensina Bertrand Russel, “solenidade é, na maioria das vezes, somente um disfarce para a impostura”.

Foto: Robert Zuckerman

*Antonio Veronese é um pintor ítalo-brasileiro que se divide entre o Brasil e a França. É autor de obras como ‘Tensão no Campo’ ( Congresso Nacional); ‘Famine’ (FAO, Roma) e ‘Save the Children’ (símbolo dos 50 anos das Nações Unidas). Com mais de 70 exposições individuais em todo o mundo, Veronese é considerado pela crítica francesa como “um dos dez pintores vivos que já deixaram seus rastros na história da Arte”.