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Antônio Veronese: A História de Bentinho (Capítulo Final – O Casamento de Bentinho)

Na noite anterior à grande data, meteram-se as quatro na cozinha preparando o festim rocambolesco

Transcorreram-se dois meses de grandes preparativos na casa das Laranjeiras tendo a frente Maria Déa, zelosa de tudo e com a mesma energia e entusiasmo de antes, para surpresa e alegria de todos na casa. Mandou repintar a casa toda, renovando o branco do interior e o rosa do exterior. Trocou as cortinas das grandes janelas da sala, fez lavar tapetes e estofados e a tudo desinfetar e perfumar. Contratou mesmo maestro Zezinho Modilho para a afinação do piano e preparação das canções para o dia do casório, escolhidas “a dedo” por ela mesma.

Depois, ordenou ao jardineiro a poda das primaveras dos muros laterais e que aparasse bem a grama e, o mais importante, que plantasse novas flores, muitas flores, como fez questão de enfatizar! E o hortelão atendeu-a com carradas e carradas de mudas debutantes e viçosas de begônias e helicônias, de camélias e bromélias, caliandras e amarantos, de alvas orquídeas e coloridas “onze horas”, de rubras “flores de maio” e alaranjados “cipós-de-são-joão”, de arroxadas gloxínias e douradas alamandras e dúzias e mais dúzias de rosas de variegada palheta, embalsamando a casa de cores e agradáveis odores. O casamento de Bentinho parecia ser o santo remédio a, finalmente, resgatar da reclusão do quarto no segundo andar a nossa encantadora portuguesa.

Às vésperas do dia apontado, Maria Déa chamou cedo as criadas à cozinha e delegou tarefas com ordens marciais.

– Vai-se comer do melhor, com fartura e variedade! Não quero nenhum apetite contrariado, nenhuma vontade insaciada, nenhum desejo desalentado.

Que Dasdô e Lourdes fossem ao armazém e se ocupassem da copiosa lista de pedidos da patroa: batatas e mais batatas doce, limões siciliano e tahiti, pimentas verde e malagueta e do reino, cebolas roxa e amarela e doce, pimentões amarelos e verdes, azeitonas de Portugal, couves manteiguinha e serrilhada, ovos e ovitos de codorna, manteigas e queijos, hortelã e curry e salsa e manjericão, sálvia e louro e tomilho, paio e grãos de bico e alho do graúdo além de dez garrafas de bom azeite importado, ressaltando:

– Pois que é o bom azeite que faz mais portugueses a todos os pratos portugueses…

Depois dirigiu-se à Euci:

– E tu vens comigo ao mercado… E lá passaram horas a escolher as melhores peças de bacalhau de que compraram vinte quilos, dez outros de atum, frangos e galinhas e codornas, rolos e rolos de picante linguiça portuguesa, dois polvos e dois cabritos de leite e meia dúzia de coelhos, depenadas perdizes e um belo pato e um corso de sardinhas, e arengues em profusão, postas e mais postas de peixes tantos e ostras e mexilhões às bacias a contentar a todo gosto e paladar.

Na noite anterior à grande data, meteram-se as quatro na cozinha preparando o festim rocambolesco, e a casa encheu-se de aromas exóticos e da respiração sem fim das panelas a cozer alheiras, e arrozes de pato e polvo, e salsicha fresca para a francesinha e a garoupa assada com tomates e alecrim…

– Faça uma cebolada à parte, na hora de servir, ordenou dona Euci a Dasdô. Adicione o vinagre e deite sobre o peixe… e não se esqueça dos grelos e das batatas que estão no forno…

De predileção da senhora, preparou-se o bacalhau a quatro gostos: com natas à moliceiro, assado no forno a lenha; à brás, esfarrapado com ovos mexidos; à lagareiro, com a posta inteira grelhada com azeite e alho; e à moda d`Ilhavo, com cebolas brancas e cozido sobre brasas.

Na manhã do casamento, bem cedo ainda, estavam já de volta as mulheres na faina
da cozinha: alheiras de Valpaços com as carnes ligeiramente defumadas; um cabrito mamão temperado à véspera, acompanhado do arroz de grelos e outro com brócolis ao vinagre; os polvos cozidos à portuguesa com azeitonas pretas e couve, cebola e ovos e alho; os coelhos guisados e uma infinidade de peixes frescos cortados em cubos, dourados no azeite e regados com suco de maçã; o grão de bico ao molho de azeite e as ostras ao molho de manteigas e ervas; a perdiz estufada ao vinho do Porto com “foie gras” e as lulas recheadas, e o refogado português, e o pato ao molho de azeitonas verdes e a perna de cordeiro à Braga….

Lourdes encarregou-se dos aperitivos e dos tira-gostos preferidos da patroa:
a pasta de atum, o salpicão português, os bolinhos de bacalhau e as alheiras fritas para acompanhar o velho vinho das quintas do vale do rio Douro, resgatado da adega.
Depois de tudo encaminhado, atiraram-se às sobremesas e a casa exalava à pastéis de Santa Clara, toucinhos do céu, queijadinhas e pingos de tocha, gracinhas de cascais, farófias e pinhas, numa extravagância de bálsamos que parecia não ter fim…

O casório, o porto, o adeus

Chegou, enfim, o dia tão esperado. Bentinho e Noêmia formavam um par lindo de se ver, desvelando uma felicidade que a todos contagiou. E fez-se a festa com toda a pompa e circunstância. E que festa! À distância se podia ver a fila dos pés-de-bode trazendo à casa das Laranjeiras a sociedade carioca, após a cerimônia religiosa no Outeiro da Glória. E comeu-se do melhor, e bebeu-se do mais caro.
Os recém casados destacavam-se por sua beleza, elegância e recato e, em meio à tagarelice das comadres e as canções tocadas e cantadas ao piano, a festa encheu de alegrias a noite das Laranjeiras.

Já quase raiava o dia quando, por fim, partiram os últimos convivas. Mas Maria Déa nem então descansou. Fez questão de verificar, uma vez mais, todas as malas de Bentinho que, naquela mesma tarde, embarcaria com a esposa para um mês de lua de mel em Portugal.

Rearrumou as camisas, conferiu as gomas, o lustro dos sapatos. Depois reviu o detalhado roteiro em terra lusitana que Bentinho haveria de cumprir na visita a parentes e amigos dos Gamões.

Passavam das dezessete horas quando ouviu-se no porto o apito soberbo do navio português deixando as amarras da Praça Mauá. Do alto convés, Bentinho e a jovem esposa acenavam com lenços brancos. No cais, choravam ainda a sogra, Dasdô, Dona Euci e Lourdes. Maria Déa, serena como um marmo, tirou da bolsa um lenço branco de seda com o qual acenou de volta, enquanto o navio, lentamente, afastava-se na tarde luminosa da baia de Guanabara.

Voltaram as mulheres à casa das laranjeiras, agora silenciosa e triste. Maria Déa subiu ao seu quarto sem dizer palavra, enquanto as criadas se atiravam à faina da faxina colossal. O comendador, que havia dado um pulo no escritório, voltou mais tarde para jantar, sozinho.

Ao sentar-se à mesa encontrou um envelope sobre seu prato. Dasdô correu a informar que o colocara ali por orientação de dona Maria Déa. Álvaro abriu o envelope e, reconhecendo a letra da esposa, leu-o à princípio com displicência, custando a inteirar-se da gravidade da situação:

Meu bom e estimado Álvaro:

Ainda que os anos nos tenham afastado, tu foste e
sempre serás o meu amor, o meu único e eterno
amor. Lembro-me, neste instante, com clareza, da
expressão altiva que tinhas quando da primeira vez
em que te vi, há mais de quarenta anos atrás.
Passei ao teu lado os melhores anos da minha vida!
A ti tudo devo, especialmente os filhos
maravilhosos que temos.

No entanto, meu amado esposo, por fidelidade à felicidade que
tivemos um dia, não me pude adaptar ao exílio do presente,
quando não mais nos tocamos, quando nem mais nos falamos.

Não te censuro, pois sei da luta que travas no teu
dia a dia, e sei que todos nós terminamos derrotados
pelas armadilhas do tempo e da rotina.
Restaram-me, como meu maior patrimônio,
as lembranças de um tempo feliz que
ficou para trás. Nada mais!

Talvez eu não me saiba adaptar à velhice que ronda
insistentemente à minha porta, meu amado amigo,
mas o fato é que não mais me reconheço na imagem
refletida no espelho a cada nova manhã.

Peço-te, por fim, que me prometas duas coisas:
primeiro, que dê saudades minhas aos nossos filhos
amados. Segundo, que Bentinho nada saiba até que
retorne de sua lua de mel.
Se mais posso te pedir, que me perdoes,
que me perdoes meu querido.

O Comendador, finalmente entendendo a gravidade da situação, subiu às carreiras a longa escadaria de acesso ao segundo andar. Encontrou a porta de Maria Déa fechada, mas não trancada. Irrompeu na penumbra do quarto onde encontrou, impecavelmente vestido, sobre a cama, o corpo inerte da mulher. Preso ainda, em uma de suas mãos, o frasco vazio das pílulas com as quais dera fim à sua vida.

Álvaro, então, impotente diante do fato consumado, abraçou ternamente a mulher, como há anos não mais fazia. Passou lentamente a mão na sua fronte fria e serena, e sentiu mais uma vez o perfume suave de seus cabelos. Depois, beijou-a sem pressa, permanecendo em silêncio debruçado sobre seu corpo, em meio à histeria das empregadas.

Ao abrir a mala em sua primeira noite no navio, Bentinho encontrou, misteriosamente ainda fresco e
viçoso, um botão de rosa branca e um singelo bilhete:

Bentinho, nunca te esqueças de mim!
Maria Déa

(Veja os capítulos anteriores aqui.)
 
*Antonio Veronese, pintor ítalo-brasileiro, é autor de obras como “Tensão no Campo” ( Congresso Nacional); “Just Kids” (UNICEF), “Famine” (FAO, Roma) e “Save the Children” (símbolo dos 50 anos das Nações Unidas). Com 80 exposições individuais em 9 diferentes países , Veronese é considerado pela crítica francesa como “um dos dez pintores vivos que já deixaram seus rastros na história da Arte”.

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