Com a morte da professora a comoção tomou conta da pequena Serrinha. À missa e enterro compareceram centenas de pais de alunos eternamente reconhecidos; autoridades locais, entre elas o prefeito e sua esposa tagarela; o gago presidente da Câmara Municipal com um séquito de vereadores de olhos nas eleições que se aproximavam; padre Francisco carregando consigo uma procissão de lamuriantes beatas; além da totalidade dos corpos docente e discente da escola à qual Catarina dedicara sua vida. Havia uma sensação de orfandade coletiva! Quando o professor e “poeta” Marcolino Soneca leu, à beira da cova, seu longo texto rococó evocando episódios da vida da velha mestra, ninguém mais se conteve e a cidade inteira, em fervorosa comunhão, banhou-se longamente em lágrimas.
Para o enterro da professora vieram também parentes de cidades vizinhas como Torrinhas de Carambola, a doze quilômetros, Riachinho dos Prazeres, a meia hora no atoleiro da estrada e de Nossa Senhora de Itirapina, a mais distante delas, quatro horas de jardineira ou dois dias de lombo de burro. Desta última veio, acompanhada do marido, dona Edwirges, única irmã da falecida professora Catarina. Compareceu à missa de corpo presente, depois ao enterro, sempre a bordo de um pé-de-bode que, por onde passava, fazia a alegria da criançada em louca correria para embarcar de garupa.
Voltando para a casa, depois do enterro, Bentinho viu lá embaixo, estacionado em frente à casa dos Fragoso, o referido automóvel. Aproximou-se curioso e, pela voz inesperadamente amável de Lilina, tomou ciência do motivo da visita:
– A senhora aí, disse-lhe, é irmã da “tua” professora. Ela quer falar contigo.
A elegante mulher, aproximando-se de Bentinho, tomou-o pela mão e, sob o olhar do marido que permanecera ao volante do automóvel, disse-lhe, com a voz afetuosa:
– Olá, Bentinho, meu nome é Edwirges e sou a única irmã de Catarina… Devias gostar muito dela, pequeno… pude perceber tua tristeza durante o enterro.
O menino esforçou-se para segurar o choro, sendo traído por uma única lágrima que escorregou impune sobre sua face, enquanto dona Edwirges seguia segurando firmemente sua mão. Esta, dirigiu-se então a Lilina que permanecia atenta à boca de cena:
– A senhora poderia nos dar licença por um minuto?
Lilina, desconcertada com o pedido, numa reação chufa, entrou casa adentro batendo violentamente a porta atrás de si. Dona Edwirges, impávida, conduziu pela mão Bentinho ao interior do veículo, onde lhe entregou um pequeno embrulho.
Era uma caixinha retangular, delicadamente enlaçada por um papel cor de rosa contido pelo laço de um barbante. Aproximou-se do menino e disse-lhe em voz baixa:
– Quando abrimos a casa de Catarina, após sua morte, encontramos isso em sua mesa de cabeceira. Estava amarrado assim como podes ver. Agora, leia o que está escrito aqui…
E, girando a pequena caixa, expôs sua base onde podia se ler: “Entregar a Bentinh…”, assim mesmo, faltando a última vogal do nome, como se o ato de escrever tivesse sido interrompido pelo advento de um acontecimento incontornável. Bentinho leu e, sem ousar tocar na caixa, continuava sem nada entender. Dona Edwirges continuou:
– Sabe, Bentinho, parece que este foi o último ato de minha irmã em seu quarto, naquela madrugada em que sofreu o derrame. Achamos que ela, na iminência da morte, quis tomar uma derradeira providência. Uma última e desesperada providência!
Dito isso, entregou a caixinha ao menino que continuava a olhar fixamente para a mulher, sem qualquer reação.
– Abra. Veja de que se trata, disse-lhe Edwirges.
Com dificuldade Bentinho desatou o cordão e a desembalou. Era uma linda caixinha de música em metal, com uma manivela lateral. Dona Edwirges acionou a pequena manivela e a caixinha se abriu… Como mágica, uma graciosa bailarina apareceu, girando seu esbelto corpo em torno de si mesma, miraculosamente equilibrando-se sobre a ponta de um só dos pés enquanto maviosa melodia erradiava-se por todo o automóvel. Os olhos de Bentinho faiscaram de encantamento… Mas a misteriosa caixinha ainda não havia revelado todos os seus segredos!
Oculto, sob a plataforma que sustentava a bailarina, havia um compartimento secreto que, uma vez aberto por Edwirges, expôs vultosa soma de notas de cem réis cuidadosamente enovelada e uma pequena folha dobrada, provavelmente arrancada de um caderno escolar.
Bentinho continuou sem reação enquanto a cativante melodia da caixinha se fazia ouvir e a bailarina continuava a dançar graciosamente.
Edwirges instou-o mais uma vez:
– Vamos, abra, leia o que está escrito.
Com as mãos trêmulas, Bentinho, finalmente, descerrou a folha de papel que trazia uma única frase, em letras manuscritas:
“Comendador Álvaro D’Almeida Gamões, rua das laranjeiras, 109, Rio de Janeiro”.
Numa incontrolável reação nervosa o menino amassou o bilhete como se tentasse sequestrá-lo aos olhos do mundo em suas pequeninas mãos… Depois, apressadamente, fechou a caixinha com receio de que a melodia despertasse a atenção de Lilina. Bentinho tudo entendera! Sua boa amiga Catarina, na iminência desesperante da morte, engendrara uma suprema tentativa de ajudá-lo enviando-lhe o endereço de seu protetor no Rio de Janeiro e, mais que isso, dinheiro suficiente para sua viagem. O olhar iluminado do menino foi o sinal para que Dona Edwirges entendesse que havia cumprido sua missão. Beijou-o, carinhosamente e, sem mais nada dizer, embarcou em seu automóvel e partiu.
(Continua na próxima semana. Veja os primeiro cinco capítulos aqui).