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Antônio Veronese: A História de Bentinho (Capítulo 5 – Vida que Segue)

Depois da partida do comendador a vida, na pequena Serrinha, seguiu acomodada, absolutamente indiferente ao drama de Bentinho. Fazia um outono com dias ainda quentes e noites já quase frias. Tardes de paradeira, vez por outra ribombando um trovão num canto mais sujo do céu. Mas chover mesmo, não. Só o bulício de São Pedro arrastando a mobília da casa.

De noite, um vento frio vindo dos contrafortes da serra obrigando a botar manta por sobre o lençol para dormir. Friozinho que melhora a cama de quem tem amor…

De manhã, bem cedinho, a névoa enroscada no alto dos morrotes e nos passes da cordilheira. Tufo molhadinho de sereno: o parapeito das janelas, as folhas de alface, a roupa deixada no varal ou esquecida quarando no capim.

Manhã de não se querer sair da cama e, já acordado mas preguiçoso da vida, ouvir do quentinho das cobertas os ruídos do novo dia que se instala: o assovio da chaleira pra passar o café ; o estalido do graveto queimando no fogão; um garnisé “castrati” cantando longe sua moda de viola de quatro notas em homenagem ao dia que já raiou; a conversa fiada da vizinhança fuxiqueira; o rangido preguiçoso de um carro de boi arriado de cana de açúcar ; o surramento cadenciado d’um machado no lombo da lenha que à noite vai cozinhar o jantar…

O dia que se livra da nevoaça sem pressa, sem a exasperação de cidade grande… Vez por outra, o canto sincopado de um pregoeiro: um dia o afiador de facas, noutro o penteeiro ou a beijueira, ou então empertigadas ciganas, surgidas não se sabe de onde, perscrutadoras da fortuna, com suas vestes de variegada palheta e mãos de inconfessáveis destrezas.

Nos domingos e dias santos, moças vestidas de branco passam cedinho a caminho da igreja. Bonito de se ver! O passo sincopado de braços dados, as roliças panturrilhas desnudadas, a geometria das ancas insinuada sob as saias e o marfim dos dentes expostos na algazarra matinal do seu corso. Depois a sinfonia dos sinos da matriz chamando os fiéis e espantando as pombas do campanário, enchendo o ar de fervorosas harmonias.

 

Pobre Bentinho

Nos primeiros tempos, as coisas até que melhoraram para ele. Ganhou, inesperadamente, um casaco tricotado de lã e, mais do que isso, o direito de comer à mesa com as outras crianças, sem distinção de cardápio!

A rabugenta Lilina, sem chegar a ser carinhosa, pelo menos diminuiu seu mandonismo, deixando de descontar no seu jovem hóspede os aborrecimentos de cada dia. Afinal, a presença de Bentinho na casa era a garantia da copiosa e inesperada renda mensal de dez contos de réis!

O menino, de bom coração, aceitou de bom grado e sem ressentimentos a nova situação e, como é comum às crianças, pelo pouco mudado voltou a sorrir e a sentir-se mais seguro, ainda que não amado.

Facilitava para si a tarefa de conformar-se com a partida do comendador e, com ela, a frustração de seu sonho de ir morar no Rio de Janeiro. Criança, coisa de Deus! Com a mesma força com que sonha, desfeito o sonho conforma-se com o pouco que tem. E Bentinho acalmou seu coração com o pouco que havia mudado na casa dos Fragoso.

A segunda quinzena do mês passou sem pressa, com uma chuvinha atrevida que foi ficando, ficando, empastelando o céu e escondendo as encostas de onde desciam rajadas, agora mais frias, do sudoeste.

Depois, choveu fortemente, um aluvião por dias a fio. E o rio engordou e mudou de cor, maquiado do rubro da terra erodida, descendo lento, preguiçoso, avançando a ribeirinha, abrindo barrocas e afrontando diques, invadindo quintais, desdenhando os limites dos homens. Lá pelos lados da ponte do Sião fez um grande estrago: hortaliças destruídas e galinhada empoleirada nas copas das árvores deitando falação ininteligível.

E, como se bem sabe, em rio gordo de chuva pescar é desperdício de tempo. A água fica farta da comida lambida das margens e peixe não perde tempo procurando pelo aço do anzol. E, sem pescar, a vida passa ainda mais devagar e os dias parecem não ter mais fim…

De quando em vez, o sol viola um canto da nuvarada, acende holofotes no lombo d’um morro, desenha insustentável arco-íris sobre a pradaria e pulveriza diamantes sobre a copa molhada das árvores… Mas logo prevalece a aluvião. Chove, chove, e chove… dias a fio, paradeira da vida.

 

Tempo de Sonhar

É certo que a nova diplomacia de Lilina diminuíra a tensão sobre Bentinho. Mas seu coração ainda disparava só de pensar no tão sonhado Rio de Janeiro! Ah, pudesse o tempo voltar atrás e tudo faria para acompanhar o Comendador. Lembrava-se do seu ar aristocrático, de suas maneiras polidas, de seu reluzente automóvel vermelho.

Essas imagens iam e vinham ao sabor da nostalgia instalada em seu peito e acalentada pela chuva que insistia em chover, chover…

À noite, na solidão de sua caminha, quando todos já dormiam, alentava ainda suas fantasias, atento à sinfonia da chuva sobre o telhado e à pingação nas poças ao derredor da casa, com sua escala colorida de sons… De quando em vez, uma breve pausa no aguaceiro, despertava o coral de grilos do jardim, com sua fala sincopada como que a dizer: Rio, Riô, Riô, ao jugo de sua imaginação.

Somente quando já ia alta a madrugada é que Bentinho conseguia pegar no sono e, antes mesmo da alba, já estava desperto novamente, mergulhado no silêncio profundo dessas horas mortas, olhos parados na expectativa da luzerna da manhã, prisioneiro ainda de sua nostalgia… Rio, Riô, Riôôô…

(Continua na próxima semana. Veja os primeiro quatro capítulos aqui)

 

*Antonio Veronese, pintor ítalo-brasileiro, é autor de obras como “Tensão no Campo” ( Congresso Nacional); “Just Kids” (UNICEF), “Famine” (FAO, Roma) e “Save the Children” (símbolo dos 50 anos das Nações Unidas). Com 80 exposições individuais em 9 diferentes países , Veronese é considerado pela crítica francesa como “um dos dez pintores vivos que já deixaram seus rastros na história da Arte”.

 

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