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Antônio Veronese: A História de Bentinho (Capítulo 3)

A família Fragoso alvoroçada não sabia se admirava o automóvel ou atendia a seu condutor
Foto: Cortesia

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O domingo amanheceu com um sudoeste forte que desaconselhava a pesca. Mas, sem pescar, o que se há por fazer? Bentinho saiu cedo de casa, caniço e lata de minhocas na mão. Pegou uma tilápia seca, dois tísicos acarás e alguns chupados jurupocas sem “sustância” que logo devolveu ao rio, pois que deles ninguém faz caso. O vento virou sem aviso, enfarruscou o céu e armou tempestade preta.

Do lado da Serra dos Martelos, ribombou trovoada e subiu pé-de-vento, alçando no ar um denso cortinado de terra roxa. E, como sempre acontece, atrás da ventaneira que prenuncia a chuvarada corre em algazarra a criançada feliz, peneira na mão à caça do Saci, moleque ardiloso, traquinas, diabrete, cabrito de cachimbo fumegante grudado no beiço, bailarino de ventanias no olho do remoinho. Sem sucesso! O “cruz-credo” d’um pé só, porque de dois nem precisa, escapa sempre à bulha com um sorriso maroto no canto de boca, pra depois vingar-se na cavalhada encerrada na estrebaria, que amanhece o dia exibindo nas crinas em carapinha as artes de crochê do neguinho desabusado.

Por volta das dez da manhã o vento foi se aquietando, até ir-se embora lambendo as franjas da serra em busca de outros destinos. Do céu areado desceu uma mormaceira dos infernos; calor de adiar compromisso e de fazer gato dormir de barriga pra cima, desobrigado de todo interesse…

Foi então que, vindo não se sabe de onde, parou em frente da casa dos Fragoso um esfuziante chevrolet vermelho de rodas raiadas e impecável capota de lona preta. Dele saltou um homem alto, imponente, calçando longas botas de couro preto e trazendo à mão uma folha de papel da qual, à custa de um pince-nez de ouro, tentava arrancar a confirmação de um endereço.

A família Fragoso alvoroçada, reunida às pressas na varanda da casa, não sabia se admirava o automóvel ou atendia a seu condutor, pessoa que, pela aparência e modos, destoava imensamente poeirento cenário ao derredor.

Fez-se uma breve pausa logo quebrada pela voz grave, mas cortês, do inesperado visitante:

– Bons dias, é aqui a casa do senhor Fragoso?

Santo Deus do céu! Mais insólita do que a visita foi a inesperada pergunta. Aquele senhor, do alto da sua fidalguia, a procurar por Fragozinho? Incrédulo, este custava a responder, num misto de surpresa e empáfia, como se a simples procura por sua pessoa tivesse especial significância. Ante a indecisão do marido, estimulou-o a mulher com um tranco seco:

– Responde homem, é contigo, infeliz!

Fragozinho, então, como que retornando à realidade, adiantou um passo, pigarreou um pouco e por fim desembuchou:

– Ele quem vos fala. Em que posso servi-lo?

O garboso visitante então, retirando as luvas de couro, aproximou-se lentamente da varanda da casa fazendo ouvir a pancada seca de suas botas luzidias sobre a calçada de terra batida:

– Desculpem pelo incômodo desta chegada sem prévio aviso; mas é que venho de muitas horas de viagem por essas estradas de Deus e não via a hora…

E, num vigoroso sotaque d’além mar, completou:

– Permitam que me apresente: sou o Comendador Álvaro D’Almeida Gamões e acabo de chegar do Rio de Janeiro. É aqui que se encontra hospedado o filho do meu compadre Antonio Bento?

Fim de Mundos

Só quem um dia viveu num canto perdido como a Serrinha dos Cocos, sabe o impacto de uma visita assim…

Nestas terras ignotas, isoladas pelas lonjuras dos Brasis de imensidão, os dias passam sem pressa e o azul da serra distante, impresso na moldura do horizonte, parece ser o limite dos mundos. Ali nada muda, nada desperta a esperança, nada acelera os corações… as gentes sempre as mesmas, a mesmice dos dias, o silêncio surdo das noites, o lento caminhar dos destinos.

O esplendor do teatro da natureza se impoe ao olhar contemplativo e à passividade dos homens; os flamboyans magestosos, luxuriosamente vestidos de rubro nas primaveras, parecem sufocar com calor vespertino e o rio mandrião, paridor de bagres e cheiros, suando a mormaceira que alimenta as termais, faz a festa da mosquitaria; as nuvens de borboletas na morraça das margens, mimetizadas sobre magricelas tabuas; o gado preguiçoso, mascando sem pressa a braquiária e o gordurão; os quintais frutuosos, de copas e sombras e a esquadrilha de varejeiras no festim frugal desperdiçado pelo chão; o céu de cirros apressados, viajantes das inconsequências do vento… O dia que se arrasta, se arrasta, se arrasta maçudo!

Às seis da tarde, “religiosamente”, a torre da Matriz canta a Ave Maria costumeira e a melancolia parece ter o mesmo peso das montanhas que aprisionam a cidade. No fim do dia, desce lentamente da serrania uma brisa refrescante, fazendo mais amenas as noites e ajudando o povo de Deus a dormir.

Na época das chuvas, então, tudo piora com a lama vermelha da terra cafeeira travando as rodas dos carros-de-boi e dos poucos pés-de-bode que se arriscam à incerteza desses destinos. O correio pode atrasar semanas e os jornais, quando chegam, estampam manchetes que já pertencem ao passado.

Sem desafios nem sobressaltos, a cidade acaba por sucumbir à pasmaceira, vivendo da sensaboria de pequenos sonhos, limitadas emoções, indigentes fantasias e, sobretudo, de muito fuxico… Para fingir alegrias, faz-se a festa da Padroeira, a festa de Cosme e Damião, a festa de Santa Cruz, a festa de São João… Quando um cirquinho mambembe aparece, com uma provecta bailarina e um leãozinho banguela, os meninos perdem o sono, matam as aulas e mijam na cama.

 

*Antonio Veronese, pintor ítalo-brasileiro, é autor de obras como “Tensão no Campo” ( Congresso Nacional); “Just Kids” (UNICEF), “Famine” (FAO, Roma) e “Save the Children” (símbolo dos 50 anos das Nações Unidas). Com 80 exposições individuais em 9 diferentes países , Veronese é considerado pela crítica francesa como “um dos dez pintores vivos que já deixaram seus rastros na história da Arte”.