O Comendador saiu cedo no dia seguinte, mal bebericando um cafezinho na cozinha. Por volta das nove horas ligou o padre, cioso de notícias. Dona Lourdes informou que a patroa estava ainda em seu quarto e que recusara desjejum esbeiçada no leito. Euci quis falar mais, mas preferiu calar-se sobre a acalorada discussão que presenciara após o jantar da noite anterior e, mais que isso, sobre o fato de que o comendador, pela primeira vez, dormiu sozinho num dos quartos de hóspedes.
Durante semanas nada mudou. Álvaro parecia ter esgotada sua paciência com Maria Déa. Assim, o pouco que restara de afabilidade entre o casal foi se desvanecendo numa solidão a dois, palpável, encovada, doída, e a casa, antes um palco iluminado de alegrias, foi se metamorfoseando num teatro de silêncios, de nada mais dizer, de jamais sorrir, de nunca mais brincar…
Ao longo de décadas de um casamento feliz, as pequenas desavenças do casal haviam sido sempre rapidamente superadas. Agora mais não. O desmazelo naturalmente imposto pela cumulação dos anos e a rotina, a incapacidade do marido de entender o que se passava com Maria Déa, sua insensibilidade aos seus anseios de mulher, acabou por arquitetar os alicerces de um drama até então impensável…
Um Ano Depois
Um ano mais padeceu de seu segredo Maria Déa. O comendador, definitivamente instalado no quarto de hóspedes e, como sempre atarefadíssimo, pouca importância deu ao progressivo eclipsar-se da mulher. Faltava-lhe de tempo!
Bentinho resignou-se, entristecido com o fim da alegria das tardes sob o caramanchão e, assim, a grande casa da rua das Laranjeiras conformou-se aos novos tempos, silenciosa nas tardes vazias, sombria nas noites de solidão.
O que consolava Bentinho, mais apaixonado do que nunca, é que caíra finalmente nas graças dos pais de Noêmia, sendo autorizado, após dez meses de namoro às escondidas, a frequentar a casa desta, ainda que sob a estreita vigilância da mãe. Com um ano e meio de namoro, formalizaram o noivado com um jantar simples ao qual Maria Déa, apesar de convidada, não compareceu.
Bentinho, agora com dezenove anos, cursava o primeiro ano da faculdade de direito, além de auxiliar o comendador nos negócios, ganhando já seu próprio dinheiro. Sentiu-se, por conseguinte, seguro para marcar o casamento, no que foi prontamente apoiado pelo comendador.
Era um domingo quente de dezembro quando, depois de aceito seu pedido da mão aos pais da noiva, Bentinho voltou eufórico para a casa. Desbordava de felicidade!! Depois de contar às excitadíssimas criadas na cozinha, subiu instintivamente as escadarias para o segundo andar.
Quebrando uma rotina de meses, bateu à porta de Maria Déa. Queria compartilhar com a amiga a felicidade daquele momento único.
– Quem é?, perguntou a mulher de dentro do quarto.
– Sou eu, Bentinho. Posso entrar?
Fez-se um logo silêncio.
– Entre, respondeu enfim a mulher.
Bentinho, que não via Maria Déa há meses, girou a maçaneta da porta com o coração martelando no peito. Entrou.
O quarto, apesar da meia-luz vespertina, estava rigorosamente esmerado, com um suave aroma de lavanda voejando no ar. Na grande cômoda de cedro, um composto de toalhas brancas com as iniciais MD, contrastando com o sanguíneo da madeira.
Uma pilha de romances desleixados sobre os dois criados-mudos e ainda outros títulos na pequena mesinha contígua à grande poltrona forrada de gobelim. As cortinas, quase cerradas, deixavam entrever o afogueamento das “primaveras” contra o muro alabastrino do jardim, tudo ao som de uma escandalosa sinfonia de pardais…
Recostada na cama, Maria Déa estendeu as duas mãos para Bentinho:
– Venha meu filho, sente-se aqui, disse-lhe com grande doçura na voz.
Bentinho aproximou-se e ela segurou firmemente suas mãos, como se não o quisesse deixar partir, sentando-o ao seu lado na grande cama de casal.
Por um momento o rapaz custou a reconhecer na mulher ao seu lado a companheira de tantas e inesquecíveis cumplicidades. Ainda que suas roupas estivessem impecáveis e os cabelos harmoniosamente pinçados por um pitoco no alto da cabeça, Maria Déa parecia ter envelhecido dez anos…
Seu rosto tinha uma expressão de desalento e desdouro … as pálpebras descaídas, a tez rugosa e desalumiada, a boca, antes deliciada de sorrisos, agora disfarçava tristezas, o olhar, antes incendiado e instigante, agora, na bruma de sua desventura, espelhava a mansidão de um lago triste, mas sereno…Perdera muito peso mas, apesar da fragilidade de seus braços, segurava ainda firmemente as duas mãos do menino contra si.
Seu olhar, então, abriu-se num esfuziante brilho, contendo as lágrimas que ameaçavam desgarrarem-se pela face.
– Como está você, Bentinho?
Bentinho nada respondeu, ainda surpreso com a aparência da mulher.
– Não nos temos visto, continuou ela, mas vejo que estás muito bonito e forte, como sempre foste. Tenho tomado todas as providências para que as criadas cuidem bem de ti, e vejo que elas têm feito um bom trabalho.
Fez-se um silêncio surdo, os dois ali, mãos nas mãos, olhos nos olhos…
– Não posso mais dizer que tu és o meu menino… agora já és um homem… continuou, intercalando as frases com pausas longas assomadas à mudez de Bentinho.
– Ando muito orgulhosa de ti pois sei que vais bem nos estudos e que tens se revelado um competente administrador dos negócios de Álvaro…
Mais uma longa pausa.
– Estás surpreso com minha aparência, não é??… Bem, todos nós, mais cedo ou mais tarde, acabamos derrotados pelos caprichos do tempo. Nós mulheres somos muito vaidosas, meu Bentinho, e conseguimos, muitas vezes à custa de inúmeros artifícios, enganar a aparência que os anos nos impuseram…mas isso é passageiro, efêmero …é, como podes em mim constatar, uma batalha perdida…
Então, olhando para a mão direita de Bentinho, segurou delicadamente o dedo com a aliança de noivado. Olhou novamente fundo em seus olhos, agora com um sorriso maternal espocando em todo o rosto:
– Estou muito feliz por ti, disse-lhe apalpando a grossa argola de ouro… Noêmia é uma moça de muita sorte e sei que tu vais fazê-la feliz.
Bentinho, então, quebrando seu silêncio, disse-lhe, sem disfarçar seu entusiasmo:
– Marcamos o casamento para dia 15 de fevereiro!
– Quinze de fevereiro?!, assustou-se Maria Déa. Mas só temos dois meses!! É muito pouco tempo…estamos em cima da hora.
Bentinho disse-lhe que já havia conversado com o comendador, que seria uma cerimônia simples na casa da noiva e que, diante disso, o prazo de dois meses era mais que suficiente.
– Mas como na casa da noiva, retrucou Maria Déa?!! Nem pense nisso! A casa aqui é muito maior e tu mereces uma grande festa. Além disso, temos que convidar todos os nossos amigos.
Bentinho reiterou que tudo estava bem acertado e que não havia razão para que ela se preocupasse.
– Não, não, não!, insistiu Maria Déa, reassumindo autoridade na voz. A sua festa de casamento quem faz sou eu e ponto final.
Pediu-lhe que marcasse com a futura sogra um encontro para a manhã seguinte e que, pessoalmente, iria falar com ela. E era tal a determinação de Maria Déa que Bentinho não ousou questionar.
– Está bem, concordou, passando seus braços por sobre os ombros da mulher, envolvendo-a num largo abraço. Ficaram assim, num silêncio longo, como que reiterando cumplicidades que a separação dos últimos meses não tivera forças para deprimir.
– Obrigado, disse ele, ainda tendo o rosto repousado sobre colo da mulher.
Ela nada disse, com um soluço estrangulado na garganta. Passou maternalmente a mão sobre seus cabelos. Depois, ainda num esforço para conter as lágrimas, disse-lhe:
– Meu menino, foste para mim um milagre, um radioso renascimento que a vida me concedeu…. Tu mudaste meus dias, trouxeste-me um novo alento…. Desde que a esta casa chegaste, eu me redescobri feliz. Tu sempre foste muito vivo e inteligente…. cheio de perguntas, ávido por aprender!! Inventavas as mais loucas brincadeiras… Nós nos divertíamos muito, lembras? Portanto não me agradeças por nada. Vá ver tua futura sogra e convide-a para um cafezinho comigo aqui amanhã, às dez da manhã.
E seja feliz, meu filho, muito feliz! Tens a minha benção!