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Antônio Veronese: “A História de Bentinho (Capítulo 2)”

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No Covil dos Fragoso

Na casa dos Fragoso, Bentinho não queria mais ficar. No início, ainda tentou aproximar-se de sua nova “família”. Mas suas iniciativas eram sempre frustradas pela indiferença de Fragosinho, pela truculência das crianças e pelo constante mal humor de Lilina. Logo ganhou o apelido de magricela, o que realmente era se comparado à obesidade das crianças da casa. Assustado com a inospitalidade crescente, Bentinho tentou chamar a atenção de Fragosinho para a existência dos portugueses residentes no Rio de Janeiro. Inutilmente. Falava com as paredes! Tanto insistiu, porém, que acabou por despertar a curiosidade de Lilina… afinal, o assunto poderia interessar.

– Que comendador é esse, moleque? perguntou-lhe a patusca entre dentes.
Timidamente Bentinho começou a falar do português e de sua esposa, amigos velhos de seu pai… Que se gostavam muito, que eram compadres, que moravam na capital…
– E daí? insistiu impaciente a mulher. O que é que eu tenho com isso?
– Daí, disse-lhe Bentinho com a voz quase inaudível, se vocês não me querem mais aqui eu poderia ir morar lá com eles… Lilina arregalou os olhos:
– Morar lá com eles? Será que eles te aceitam?
– Eu não sei, respondeu o menino. Mas eles gostavam muito do meu pai. Sabe, meu pai uma vez ajudou muito eles…
– E você sabe o endereço deles?, perguntou a mulher subitamente interessada.
 
A Carta
 
A presença de Bentinho incomodava tanto que bastou que se revelasse a existência do Comendador português para a ladina Lilina bosquejar, às pressas, uma carta dando conhecimento da precária situação do menino. Enfatizava nela as dificuldades financeiras; a falta de espaço para acomodar mais uma criança em casa; a doença de Fragosinho… enfim, encerrava dizendo esperar do Comendador, com grande ansiedade, uma rápida solução para o problema.
 
De pronto, sequestraram da algibeira de um carcomido casaco de Bentinho uma velha folha de jornal enrodilhada d’um puído barbante, prenhe de velhas cartas enviadas pelo comendador, de onde pinçaram o endereço deste no Rio. A carta, despachada às pressas por Fragosinho, levaria, segundo cálculos precisos do oficial do correio, cinco dias para chegar ao Rio. Transcorreram-se os cinco dias previstos; mais cinco, suficientes para o retorno de eventual resposta; mais uma semana… outra ainda e… nada! Foi enorme a decepção. O que teria acontecido? Teria o lusitano recebido a missiva? Na hipótese afirmativa, teria ele virado as costas ao problema? Estaria ele ainda vivo?
 
Tempo de Espera

O tempo ameniza dores e arrefece amores. Como esperar que o amigo distante, depois de tanto tempo transcorrido, pudesse ainda sensibilizar-se com a situação do pequeno órfão na perdida Serrinha dos Cocos?

À medida em que o cumular dos dias desacreditava mais e mais a vinda de uma resposta da capital, a situação de Bentinho no seio dos Fragoso piorava. Privado, desde o início, de qualquer afeto ou da mínima atenção, Bentinho começava agora a ser alvo de más-vontades crescentes, de distratos e proibições descabidas, de provocações e grosserias. Os fedelhos da casa, respaldados pela fiança da mãe, agravavam agressões e pequenas humilhações cotidianas, fazendo da vida do nosso bom menino um inferno sem fim. Isso sem contar a injusta discriminação na partilha da comida, que sempre aquinhoava a prole de Lilina com o melhor, restando para ele, mero intruso, somente as sobras das panelas; o banho restrito a uma ou duas vezes por semana, sempre quando a água do chuveiro já estivesse fria; as roupas raramente lavadas e jamais passadas. O pequeno cheirava mal.

Num fim de semana, para piorar ainda mais as coisas, Bentinho foi acusado por um dos roliços fedelhos de lhe ter roubado uma bolinha de gude. Disse este ainda mais: que por birra, Bentinho a teria lançado pela janela no “jardim” da casa, um baldio capinzal, condomínio de cobras e lagartos. Lilina não hesitou um só instante: obrigou Bentinho imediatamente a ir procurar a pequena esfera de vidro verde perdida no copioso matagal. Depois de que nosso pequeno herói passasse mais de uma hora sob um sol causticante à busca da preciosa bolinha, o filho acusador, zombeteiro, retira de seu próprio bolso o objeto do alegado furto!! Foi uma enorme troça familiar. Lilina, antes que repreender a seu filho, adorou a “brincadeira” de mal gosto e juntou-se ao coro na gargalhada geral. Pobre Bentinho, que jamais fizera mal a ninguém…

Quase um mês se passou após o envio da carta ao Comendador. Altas horas da noite, Bentinho foi acordado, do sono justo que dormem os meninos, por uma ríspida discussão na qual a dona da casa exigia, ante relutante reação humanitária do marido, que este se livrasse do pequeno intruso a qualquer preço, despejando-o compulsoriamente, se preciso fosse, na casa de algum parente.

– Afinal, concluía ela, se na hora da herança chamam-se os herdeiros que se faça o mesmo na partilha das obrigações.

Deitado em sua caminha improvisada e fingindo dormir, Bentinho a tudo ouviu em silêncio. Na fria despensa passou o resto da noite com os olhos fixos nos filetes de luar que escapavam por entre as frestas das telhas portuguesas, projetando-se como lasers sobre as prateleiras vazias… Lembrou-se então do pai morto há um mês e, por fim, desatou a chorar; um choro fundo e solitário, sufocando os soluços para não ser ouvido pelos donos da casa.

 

*Antonio Veronese, pintor ítalo-brasileiro, é autor de obras como “Tensão no Campo” ( Congresso Nacional); “Just Kids” (UNICEF), “Famine” (FAO, Roma) e “Save the Children” (símbolo dos 50 anos das Nações Unidas). Com 80 exposições individuais em 9 diferentes países , Veronese é considerado pela crítica francesa como “um dos dez pintores vivos que já deixaram seus rastros na história da Arte”.

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