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Antônio Veronese: A História de Bentinho (Capítulo 18)

Neles desnudava-se o desejo de um homem, não mais a fantasia de um menino...

OS CONSELHOS DO PADRE

Maria Déa confiou seu martírio somente ao padre Ovídio. Depois de infinitas conversas e fiando-se na discrição do sacerdote, ela resolveu buscar nele socorro para sua agonia. Não aguentava mais, estava sufocada. Precisava dividir com alguém seu padecimento.

O bom padre a ela ouviu em silêncio. Em nenhum momento seu olhar perdeu a serenidade ou exibiu qualquer censura. Conhecia, pelos longos anos de amizade que os unia, sua inquestionável honradez. Disse-lhe, apenas, que compreendia o que se passava, que podia avaliar o ônus emocional que tal situação causava à dileta amiga e que iria aconselhá-la não como sacerdote, mas como um amigo fraterno.

Assim, por meses a fio, o padre transformou-se no único balizamento para Maria Déa e seu amotinado coração. Com firmeza, mas candura, repreendia suas recaídas, exigindo que ela preservasse sua dignidade, censurando sua autocomiseração e instando-a a ser forte:

– Não tenhas pena de ti mesma, minha filha, repetia.

Maria Déa agarrou-se ao arrimo do sacerdote como a uma corda à beira do precipício. O padre sabia que se tratava de situação delicadíssima e tinha razões de sobra para temer a reação do comendador se este desconfiasse de qualquer coisa. No primeiro momento, aconselhou-a vivamente a enviar Bentinho a um colégio interno: veria menos o menino e aliviaria a tensão da convivência diária. Ela, no entanto, descartou de imediato esta possibilidade: queria o rapaz ao seu lado! Não podia abdicar da responsabilidade de sua educação, menos ainda imaginar a casa despojada de sua esfuziante alegria. Mais grave ainda, não se permitiria privar o menino da presença dela, objeto de seu filial afeto desenvolvido ao longo dos anos.

Então, aconselhou o padre, que Maria Déa se dedicasse mais às atividades filantrópicas coordenadas pela paróquia. Com isso teria muito por fazer e desviaria seus pensamentos do drama que a atormentava. Para isso, nomeou-a diretora da quermesse de Cosme e Damião, organizada pela igreja na semana seguinte, com renda em benefício do orfanato “Filhos de Deus”… Disse-lhe que, com sua energia e criatividade, daria nova força ao evento, enfatizando sua vocação à caridade e à benevolência. Em vão: Maria Déa não tinha energia para nada. Passava os dias prostrada na cama, com a expressão sovada e na desleixação de tudo. O padre começou a temer que a situação escapasse do seu controle.

A LONGA BATALHA

Foi-se o verão vagarosamente, invadindo as fronteiras do outono na bela Guanabara: chuvarada no abafadiço das tardes, bafejo mais fresco nas noites. Depois, entrou um maio mais frio, com o cerúleo profundo da arcada celeste impresso nas águas da baia. Tempo que se arrasta, entorpecido, gravado pelo calvário das turbulências da alma…

De quando em quando, o apito gordo de um navio entrando pela barra, ecoando na morraria pedrosa do Pão de Açúcar. Um vento cortante anunciando a invernia, subindo pela ribeira nua do Carioca, impondo nervosa coreografia ao verdume do Cosme Velho e às fraldas do Redentor…Faltava um mês para Bentinho completar dezoito anos…

Malgrado todos os esforços do padre, nada parecia adormecer o sentimento instalado no peito de Maria Déa. Longa e tenebrosa batalha consigo mesma, denunciada na máscara facial d’onde se ausentaram de vez o sorriso e o luzeiro do olhar. Emagrecera mais no rosto do que no corpo, acentuando-se as vincas em torno da boca e dos olhos e alvejaram-se as raízes dos cabelos desgrenhados. Cuidava somente do que fosse absolutamente essencial e improrrogável. Cônscia de que se engajara em uma batalha perdida, desesperançada de tudo, dispensou a costureira das visitas semanais e cancelou suas idas às lojas do centro em busca de novidades, desinteressando-se de todos os caprichos de mulher.

Na tentativa de burlar a atenção do marido e obedecendo a rigorosa estratégia firmada por padre Ovídio, aos poucos e com muita dificuldade, voltou a ocupar-se de pequenos afazeres do dia a dia da casa, ainda que sem o vigor de antes. Saía do quarto mais amiúde durante o dia e voltou a sentar-se à mesa do jantar com o marido e Bentinho… pequenas atitudes que revelavam estar determinada a sufocar, ainda que dolorosamente, a impossível quimera abrigada em seu coração.

Foi então que, mais uma vez, como se imprudentemente o destino insistisse em deflagrar a tempestade, aconteceu algo que pôs tudo a perder… Era uma ensolarada manhã de domingo e ouvia-se ao longe os sinos das igrejas na ladainha do chamamento dos fiéis. À missa atenderam todos da casa, à exceção de Maria Déa, desobrigada das exigências cristãs em sua longa jornada de danação.

Como de costume, ela subiu ao quarto de Bentinho para recolher a roupa suja: pegou o pijama, toalhas usadas, uma camisa, meias e cueca e, por fim, a calça que o menino usara na noite anterior, deixada sobre uma cadeira ao lado da cama. Tateou os bolsos à cata de algum objeto esquecido e encontrou, num deles, uma folha de papel cuidadosamente dobrada. Abriu-a, lentamente, reconhecendo nos versos manuscritos a letra de Bentinho:

Branca menina,
Como é meigo o teu olhar
pousado em mim.
Como vasto é o silêncio
da tua boca carmim!

Como brancas as mãos com que te despes,
finos os peitos que desnudas.
Como triste é o estender do teu corpo,
por sobre o leito em que te entregas.

Profundo é o vale da tua boca,
estreita a grota dos teus desejos.
Doce o rio que de ti emana
Vasta a sede que em ti sacio!

Leu a primeira vez apressadamente, como quem engole de uma só vez o copo de vinho, sem atentar-se ao buquê. Depois releu como se buscasse, incrédula, confirmar o sentido de cada verso. Por fim, ainda uma vez, degustando palavra por palavra, esquecida do mundo em volta de si. Então, sentiu escurecer a vista e dealvar-se a face, deixando-se cair na cama quase desfalecida. Faltava-lhe o ar!

– “Profundo é o vale da tua boca, estreita a grota dos teus desejos…” repetiu em voz alta.

Não podia acreditar. Não queria acreditar! Os versos de Betinho revelavam um erotismo inimaginável!! Bentinho, o seu Bentinho!! Como podia ser tão ousado o menino que ela acreditava ainda inocente e puro? Como podia, com dezoito anos incompletos, referir-se a uma mulher com tamanha madureza?

Sentiu o corpo enregelar-se, o ar rarefazer-se, as mãos trêmulas a crepitar a pequena folha de papel reveladora de tão insuspeitáveis inconfidências.

Então, saiu em tresloucada carreira pelo corredor, trancando-se no próprio quarto depois de bater com violência a pesada porta atrás de si. Colocou-se à frente do espelho conferindo a própria máscara facial imposta pela emoção intempestiva. Estava lívida, sua aparência denunciando o descaso consigo mesma, as mamas arfantes desrespeitando os limites do decote no flagrante de sua destemperança. Passou com violência as mãos no rosto tentando desmanchar à força a patética expressão de sua imagem capturada.

O coração ameaçava saltar-lhe do peito, sentia as mãos frias, as pernas dormentes. Tomada de incontrolável fúria, desvencilhou-se das próprias roupas na tentativa de diminuir a sensação de asfixia. Atirou-as à distância, voltando-se mais uma vez para o espelho, agora nua, descomposta, impotente diante da crueza da imagem refletindo todo seu sofrimento. Não mais se podia reconhecer … Não era mais ela mesma. Não era mais Maria Déa!

Lembrou-se da menina da casa da frente, a quem os versos de Bentinho haviam sido dedicados. Seu sorriso angelical, os longos cabelos de anjo, a brancura da tez, a delicadeza do rosto e a sensualidade do corpo… O fragor da juventude capturado em essência por sua figura angelical. Então, cerrou os punhos e golpeou violentamente o espelho, partindo-o em mil pedaços. E caiu num choro espesso, profundo, aflito e solitário, indiferente à hemorragia da mão ferida no impacto contra o vidro.

Por volta das treze horas o comendador voltou para o almoço. Encontrou a mulher metida sob cobertas, com um lenço improvisado como penso na mão ferida e uma bolsa de água fria sobre a cabeça. Disse ao marido que padecia de uma terrível enxaqueca.

Ao entrar no banheiro, o comendador deparou-se com o espelho quebrado, ainda os cacos no chão e sangue por toda parte. Indagada a respeito, disse-lhe que escorregara e que, para evitar a queda, havia se apoiado no espelho que se partira em mil pedaços. Perguntou-lhe o comendador por que não ordenara às criadas a limpeza e, mais que isso, por que não havia chamado o médico para cuidar do ferimento. A mulher caiu num choro copioso:

Por volta das treze horas o comendador voltou para o almoço. Encontrou a mulher metida sob cobertas, com um lenço improvisado como penso na mão ferida e uma bolsa de água fria sobre a cabeça. Disse ao marido que padecia de uma terrível enxaqueca.

– Deixe-me em paz, pelo amor de Deus!, implorou. Por favor, Álvaro, deixe-me em paz! Eu só quero dormir,
deixe-me dormir.

O comendador foi até as empregadas perguntar o que se havia passado. Ninguém sabia de nada, nada fora ouvido. Perguntou então se a mulher havia se alimentado.

– Comeu nada não, senhor, respondeu-lhe Dona Euci. Não desceu para o café e não quis comida no quarto.

Depois, temerosa de dizer mais do que devia, informou que quando subiu ao quarto, ouvira o choro fundo de dona Déa. Um choro de cortar o coração! Batera à porta para oferecer ajuda, mas ela estava muito nervosa e a expulsara de lá.

O comendador voltou ao quarto, numa última tentativa de acalmar a esposa e descobrir a razão de seu padecimento. Sentou-se na cama. Maria Déa permanecia debaixo dos cobertores sem dirigir-lhe o olhar:

– Você não vai almoçar? perguntou-lhe o marido.

– Não, respondeu secamente.

– Quer que lhe tragam a comida aqui?

– Não, estou cansada e quero dormir.

O comendador, já sem muita paciência para tratar de um problema que se arrastava há meses, desceu para almoçar mais uma vez sozinho com Bentinho. Antes, porém, mandou Dasdô chamar padre Ovídio.

Comeram Bentinho e o comendador um suculento ensopado, sozinhos na grande mesa da sala de jantar. Pouco se falou. A casa padecia do silêncio, como uma catedral nas horas fundas da madrugada.

Faltava um quarto para as duas quando o padre chegou. Subiu diretamente ao quarto do casal, depois de reconhecer no semblante do comendador a gravidade do momento. Bateu à porta do quarto de Maria Déa e identificou-se. Esperou por um tempo sem receber qualquer resposta. Insistiu. Inutilmente. Pela primeira vez a mulher recusava-se a recebê-lo.

– Maria Déa, sou eu, padre Ovídio. Posso entrar?

– Não!

– Apenas por um minuto, insistiu o padre.

-Estou cheia do teu palavrório, gritou a mulher das profundezas da alcova. Estou farta da tua ladainha. Deixe-me em paz, por favor, deixe-me em paz!

O padre ouviu em silêncio do corredor. Depois desceu as escadas sem conseguir disfarçar no rosto o peso da sua preocupação. Sentou-se numa das cadeiras da mesa, ao lado de Bentinho. O comendador convidou-o para uma xícara de café ainda quente no bule de prata sobre a mesa, mas ele declinou agradecido. Trocaram um longo olhar, sem dizer palavra. O comendador pediu a Bentinho, que já acabara de comer, que os deixassem a sós por alguns minutos. Isso feito dirigiu-se ao padre:

– Meu bom amigo, não sei mais o que fazer.

O padre, que sabia da gravidade da situação, fiel depositário de um segredo que não partilhara com ninguém, procurou acalmar o marido:

– Isso passa, isso passa. São coisas de mulher, da idade, dos hormônios. A nós, homens, não foi dada a faculdade de entender os labirintos da alma feminina. Meu conselho é que ela não seja pressionada. Não lhe cobrem nada, nem explicações. Há males, continuou o padre segurando paternalmente a mão do comendador, dos quais nem o próprio padecente consegue identificar a causa. Deixe o tempo intervir com seu bálsamo.

Quando padre Ovídio deixou a casa, já era quase hora da missa da tarde. Saiu com o semblante carregado. Tudo fizera para acalmar o comendador, minimizando o problema, tentando ganhar tempo. Mas, sua experiência e sensibilidade indicavam que perdera o controle da situação. Usara todo seu talento para reverter o curso dos acontecimentos, mas a caudal da inundação agigantava-se e os diques estavam na eminência de serem rompidos. E ele sentia-se assustado e impotente. Num dado momento acreditara que a formação religiosa e o caráter reto de Maria Déa teriam força suficiente para conter seus impulsos. Fiara-se o pároco na integridade da mulher para montar uma estratégia que funcionara relativamente bem durante meses de conversas e aconselhamento. Por que, então, subitamente, tudo parecia desmoronar e voltar à estaca zero?

O que o padre não sabia é que a poesia encontrada inadvertidamente na calça de Bentinho desencadeara em fúria a tempestade por tanto tempo adiada. Presumindo em Bentinho a inocência ainda, Maria Déa se surpreendera com o erotismo avassalador de seus versos. Neles desnudava-se o desejo de um homem, não mais a fantasia de um menino…

(Continua na próxima semana. Veja os capítulos anteriores aqui.)
 

*Antonio Veronese, pintor ítalo-brasileiro, é autor de obras como “Tensão no Campo” ( Congresso Nacional); “Just Kids” (UNICEF), “Famine” (FAO, Roma) e “Save the Children” (símbolo dos 50 anos das Nações Unidas). Com 80 exposições individuais em 9 diferentes países , Veronese é considerado pela crítica francesa como “um dos dez pintores vivos que já deixaram seus rastros na história da Arte”.

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