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Antônio Veronese: A História de Bentinho (Capítulo 17 – Sob o Jugo)

Foi um longo e insubmisso calvário, como um vinho que, lentamente, arquiteta em silêncio delícias imprevisíveis

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Como explicar a profunda transformação de Maria Déa? Como entender que uma mulher cheia de vida, carismática e radiosa, pudesse transformar-se em tão pouco tempo a ponto de causar desassossego às próprias criadas da casa? Justamente ela que resistira ao distanciamento progressivo de Álvaro pela consumpção natural de décadas de casamento; que resistira mesmo à dolorosa partida dos filhos e ao exílio involuntário de seu tão saudoso Portugal…

Como explicar tal transformação daquela que sempre fora a estrela maior a iluminar todo o teatro familiar?

A explicação para tudo era um segredo guardado a sete chaves pela senhora Gamões. Um inebriante segredo que aqui cometo a ousadia de revelar, queridos leitores, contando com a vossa mais severa discrição.

Acreditem, se possível for, mas o fato é que, com o passar dos anos e a ausência constante do comendador, alguma coisa começou a mudar na profunda afeição que Maria Déa sentia por Bentinho… Ela sabia disso, sentia isso e lutava desesperadamente contra isso!

Primeiro, assustada, descobriu-se estranhamente incomodada quando Bentinho interessava-se por uma rapariga qualquer. Depois, teve um verdadeiro acesso de fúria, trancada em seu banheiro, quando o descobriu apaixonado pela menina da casa fronteiriça.

Inicialmente, recusou a admitir para si mesma o sentimento que lhe invadia o peito como uma horda de hunos, derrubando muralhas, incendiando cidades, desflorando mandamentos. Batia-se ferozmente contra o livre-alvedrio de seus pensamentos, contra a lascívia de inesperadas fantasias, refugiando-se horas a fio a debulhar o terço e a rezingar o confiteor, como anteriormente mencionado.

Mitigava sua imensa culpa com o zelo desmesurado que dedicava ao menino, “zelo que nem mesmo a própria mãe teria!”, como fazia questão de enfatizar. Mas, Bentinho não era seu filho… Bentinho não era seu filho!! e, ainda que lutasse com todas as forças e aturdida recusasse a aceitar, o fato é que não era mais maternal o imenso afeto que, por ele, ela sentia.

Foi um longo e insubmisso calvário, como um vinho que, lentamente, nas profundezas da cave escura, arquiteta em silêncio delícias imprevisíveis.

Censora implacável de seus devaneios e de comportamento imaculável, Maria Déa, no entanto, não conseguia controlar seus delírios oníricos… E que sonhos, Deus do céu!

– Pesadelos, dizia ela, nas suas infindáveis conversas com padre Ovídio, pelos jardins da casa. Acordava banhada em suores, com palpitações e calafrios que só se acalmavam com demorados banhos frios nas altas horas da madrugada.

Temia, dormindo, deixar escapar qualquer frase ou nome que revelasse a incandescência do seu desatino. Passou a deitar-se com duas ou três camisolas superpostas, como que pudesse privar-se do próprio corpo, e só recolhia-se ao leito depois de uma boa xícara de camomila romana, fiada em seus efeitos de acalmação.

Maria Déa estava doente sim, mas doente de seu segredo!! De nenhum outro mal padecia, a nada era ela alérgica, nenhum mal olhado a aprisionara, nenhum aleijão do espírito a afligia… as coceiras, a inapetência, a insônia, o noctambulismo, o desregramento progressivo de sua vida eram tão somente sequelas da terrível batalha que travava consigo mesma.

A princípio resistira desesperadamente contra o intruso sentimento. Não se permitia fraquejar, recusava-se a acreditar que pudesse ser vencida e purgava uma culpa sem fim. Foi até a Candelária acender uma vela para Santa Catarina d`Alexandria, por uma estranha coincidência, também a santa de devoção da da nossa inesquecível professorinha Catarina. Queria, como a santa, ter forças e determinação para lutar e resistir à tirania…

Por um tempo, pareceu recuperar, graças ao alicerce espiritual da igreja, a serenidade tão dolorosamente perdida. Então, por um irresponsável capricho do destino, aconteceu a ela de estar no sótão naquela fatídica tarde… E a visão do corpo nu do menino sob o chuveiro, enquanto sobre a casa das Laranjeiras rugia em fúria a tempestade de verão, foi a gota d`água a arrevessar o oceano de inconfessáveis devaneios…

Não era mais o corpo de um menino!, repetia consigo mesma, como que a desculpar-se… Não era mais o corpo de um menino, repetia!! Ao contrário, era já o corpo belo de um rapaz de ombros largos, de pernas penugentas, a despertar um desejo por décadas inerte e que, agora, devorava-lhe as entranhas num incêndio colossal.

Daí o babilônico desarranjo emocional a desencadear a exótica sintomatologia que surpreendia os médicos e desautorizava os compêndios. Maria Déa buscava desesperadamente esconder seus sentimentos, mas a excentricidade do seu comportamento revelava a ferocidade da batalha que consigo mesma travava. Entre tantas esquisitices –assuntos de sobra para as intrigas da cozinha- passou a recolher pessoalmente todas as roupas usadas por Bentinho e fazia questão de lavá-las de própria mão, dispensando Lourdes desta obrigação. Bisbilhotava por suas gavetas enquanto ele estava na escola e lia atentamente seus versos dedicados à Noêmia, firmados numa brochura sobre a mesinha de cabeceira. E que versos! Que arrebatado e audacioso erotismo!! Não era mais um menino, o seu Bentinho, não era mais um menino !

Padecendo de enorme compunção e sitiada por seus limites morais, Maria Déa entrou num doloroso jogo de avançar e recuar, hora atendendo à truculência normativa de seu caráter, ora ao jugo deleitoso de suas fantasias.

No entanto, a cada fraqueza que se permitisse, fosse ela um simples devaneio, impunha-se um grande pungimento. Vinham então as tardes trancadas no quarto, o desleixo com a aparência, a recusa em se alimentar. Aguçavam-se as crises de coceira, os calafrios, a sudorese noturna e, por decorrência, impunha-se a regularidade dos encontros com padre Ovídio.

A um ciclo de grande padecimento moral e recolhimento sucedia uma fase onde se permitia maiores atrevimentos, como, por exemplo, subir no meio da tarde ou durante a noite ao escuro sótão. De lá, enquanto pesadamente dormia o comendador, passava horas a observar o rapaz, não especialmente por curiosidade de sua nudez, mas simplesmente para sentir-se mais próxima dele.

Via-o escrever, banhar-se, vestir-se para dormir e, muitas vezes, mesmo depois de apagadas as luzes e de não poder mais vê-lo imerso na escuridão, lá ainda permanecia silente e vigilante, como se o tivesse em seu colo, a velar por seu sono e a perscrutar sua respiração.

Era comum, então, que, altas horas da madrugada, retornasse ao seu quarto tateando na escuridão do sótão, provocando os estranhos ruídos que assombravam a imaginação das criadas: batidas, tropeções e, especialmente, os rangidos secos da madeira do piso arqueado sob seu peso. Numa dessas noites, já começando a descer a escada em caracol em meio à escuridão do corredor, percebeu que Dasdô a avistara através da janela sobre o quintal. Num movimento brusco, tivera tempo de voltear o corpo, apagar a vela e esconder o rosto por detrás da pesada manga da camisola. O fantasmagórico movimento das vestes, transpassadas pela efêmera luz, havia composto a aterradora visão relatada por Dasdô à mesa do café da manhã.

(Continua na próxima semana. Veja os capítulos anteriores aqui.)
 

*Antonio Veronese, pintor ítalo-brasileiro, é autor de obras como “Tensão no Campo” ( Congresso Nacional); “Just Kids” (UNICEF), “Famine” (FAO, Roma) e “Save the Children” (símbolo dos 50 anos das Nações Unidas). Com 80 exposições individuais em 9 diferentes países , Veronese é considerado pela crítica francesa como “um dos dez pintores vivos que já deixaram seus rastros na história da Arte”.

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