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Antônio Veronese: A História de Bentinho (Capítulo 16 – O Segredo)

Bentinho, como de costume, saltava cedo da cama para ir ao colégio e agora passou a tomar o desjejum na cozinha

Mais um mês se passou sem que nada mudasse no comportamento de Maria Déa. Agravavam-se a inação e o desmazelo, a falta de apetite para a vida e o destempero. Dormia agora até bem mais tarde, levantando-se somente com a chegada do pároco e, mesmo assim, era difícil fazê-la sair do quarto.

Bentinho, como de costume, saltava cedo da cama para ir ao colégio e agora, sem a companhia da dona da casa, passou a tomar o desjejum na cozinha, ouvindo o tagarelar sem fim de Lourdes, Dasdô e Euci.

A conversa, que quase sempre tratava de frivolidades e fuxicaria, havia incorporado ao seu repertório, nas últimas semanas, alguns estranhos acontecimentos que provocavam arrepios, principalmente em Dasdô: os misteriosos ruídos ouvidos por toda a casa! Bentinho confirmava que, ele também, andava ouvindo coisas: rangidos de madeira, estalos inexplicáveis que pareciam vir das profundezas das paredes.

Depois do almoço, quando Maria Déa trancava-se em seu quarto para a sesta e Bentinho recolhia-se também, envolvido com os deveres da escola, é que mais nitidamente ouvia-se o misterioso borborismo da casa.

Dasdô, com sua vozinha esganiçada e olhinhos arregalados, garantia que os sons vinham do sótão. Impossível, contestava Dona Euci: o sótão estava sempre trancado a sete chaves, enquanto a patroa fechava-se para repousar. Faziam, então, devido à radical mudança da patroa, toda sorte de conjecturas: estaria mesmo a senhora Gamões possuída por alguma coisa ruim? Seriam aqueles ruídos, que assustavam a todos, a prova disso? Teria ela sido “incorporada” por alguma coisa molesta que tomara possessão da casa toda?

Dasdô deu um salto da cadeira:

– Cruz credo, Virgem Maria!, fazendo por três vezes o sinal da cruz.

Dona Lourdes a mais sensata das três, procurou acalmar os ânimos :

-Parem com isso. Vocês parecem crianças! Isso é só o calor que faz a madeira da casa estalar.

Mas o fato é que havia mesmo barulhos, e barulhos estranhos! Coisa de meter medo. Ruídos inexplicáveis, facilmente percebíveis por ouvidos mais atentos. E eles não cessavam!

Quanto a Bentinho, não dava muita atenção às explicações metafísicas para os ruídos. Sob o jugo da inebriante paixão que costuma acompanhar o primeiro amor, estava muito mais interessado na menina da casa da frente, para quem continuava a escrever poesias apaixonadas, do que em eventuais fantasmas que pudessem habitar a grande casa da rua das Laranjeiras. Ainda assim, também estava intrigado. Ouvira inúmeras vezes os sons que assustavam as criadas. E, pelo menos em uma coisa, concordava com Dasdô: eles, inquestionavelmente, vinham da soturna escuridão do sótão.

A pretinha, então, ressalvando que sabia que ninguém iria nela acreditar, disse que tinha uma história terrível para contar. Cruzando os dedos sobre os lábios e recuando dois passos para trás num gesto teatral, afirmou que numa das noites, altas horas da madrugada, havia visto, através de uma das janelas laterais do andar superior, um vulto descer pela escada do sótão, envolto pela escuridão. Que trajava esvoaçantes vestes transparentes que bailavam no ar atravessadas pela luz de uma vela, numa visão assustadora. Disse ter sentido um calafrio na espinha, um terror que a fez cerrar os olhos e permanecer ali paralisada um bom tempo, enquanto a casa mergulhava no silêncio profundo madrugada.

– E o que é que tu fazias altas horas da madrugada no quintal, menina? perguntou dona Euci, incrédula.

– Eu estava sem sono e com calor e saí do quarto prá me refrescar, respondeu Dasdô. Estava bem naquele canto ali, disse, apontando para o quintal, e de lá pude ver o vulto pela janela. Eu juro por Nossa Senhora da Aparecida!

Lourdes mais uma vez interveio, creditando tudo à imaginação da menina.

– Imaginação?, indignou-se Dasdô, enquanto nervosamente, mais uma vez, fazia o sinal da cruz. Isso é coisa de assombração, coisa ruim! Deve ser o que está fazendo mal à patroa…

Lourdes, no entanto, sempre mais sensata, insistia em desacreditar as suspeitas da pretinha:

– Deixa disso, menina. Vamos parar com essa conversa fiada. Sai, sai, sai, enxotou-a da cozinha. Vai cuidar do teu serviço e chega de conversa mole.

Mas Dasdô, à porta, insistia assustada:

– Dona Lourdes, desde esse dia que eu num chego mais nem perto daquela escada. Cruz credo! Repetia, benzendo-se sem parar. E reiterava que, sempre que tinha que subir no andar de cima, jamais dava as costas à escada.

– E faço sempre o sinal da cruz, prá mode de me prevenir de um novo encontro com a coisa ruim.

Na manhã seguinte, um domingo bem cedo à mesa do café, o assunto foi o mesmo. Desta vez foi de Bentinho que garantia ter ouvido um som seco na madeira do forro bem sobre sua cabeça, enquanto se preparava para dormir.

– Foi um estalo, como se rachasse alguma coisa. E foi no forro do meu quarto. Tenho certeza de que foi no forro do meu quarto!

Dizia mais: que segundos após, ouvira claramente uma sucessão de pequenos estalidos como se alguém andasse pelo sótão em meio à escuridão da noite.

– Eu não disse, gritou Dasdô, colocando as mãos nas cadeiras como que a desafiar a censura de dona Lourdes. Cruz credo, Virgem Maria, repetiu, fatigando à própria Nossa Senhora sua reiterada obsecração. 

A Chegada do Padre

Por volta das dez horas da manhã, como de costume, chegou padre Ovídio, direto da missa que vinha de rezar. Como Maria Déa ainda não se levantara, o pároco dirigiu-se à cozinha, juntando-se às criadas e a Bentinho para uma xícara de café.

D. Euci, para provocar o assunto e ver se arrancava alguma inconfidência do sacerdote, perguntou-lhe se podia benzer a casa que estaria, segundo Dasdô, mal-assombrada.

Padre Ovídio ficou curioso:

– Mal-assombrada por que?

O padre ouviu com atenção os relatos de cada um. Assuntou detalhes, interessou-se por cada versão, precisou dias e horas, querendo de tudo informar-se. Depois fez um pesado silêncio, tendo a testa franzida e o olhar distante… Retirou os óculos da face num gesto largo e limpou sem pressa cada uma das lentes na dobra da batina que ainda recendia ao incenso da missa. Depois serenizou o semblante e acalmou a todos: 

– Provavelmente, disse, concordando com tese de dona Lourdes, tratava-se apenas do estalidar da madeira pela variação da temperatura. Mas, antes de encerrar a conversa, perguntou a Bentinho se ele tinha certeza de que os sons vinham do sótão da casa. Bentinho foi categórico afirmando que, quanto a isso, não tinha nenhuma dúvida.

Sob o Império da Paixão

Nada mais avassalador do que a paixão. Sob o jugo desta cometem-se os maiores desvarios e inspiram-se os gestos mais sublimes. A paixão é o mais inebriante dos licores e o mais amargo dos venenos. Ela nos assombra na juventude e nos faz saudosos na velhice. Lembro-me de uma vez em que vi um homem, ainda moço, desfiar para um amigo bem mais velho o rosário de agruras por que passava por conta de uma louca paixão não correspondida.

Respondeu-lhe o idoso, depois de pequena reflexão:

– Olha, meu filho, embriaga-te bem deste vinho, comprazeia-te sem cesuras deste desvario de que hoje reclamas. Um dia, quando velho fores como eu, quando te abandonarem todos os desejos, vais sentir saudade desta agonia que hoje te sufoca peito.

Paixão é como enchente, desconhece diques, desdenha limites, impõe novas geografias. Chega de mansinho, sorrateira e instala-se qual posseiro no peito do padecente, como ensina o grande Chico. Depois, é viver sob a ditadura de seus caprichos, escravo de suas impertinências. Marido larga mulher, mãe abandona filhos, filho desconhece pai… A cegueira que ela produz é temporária mas, enquanto dura, poucos têm força para enfrentar sua tirania. Se correspondida é inexcedível no prazer que nos arrebata… a vida vira uma sinfonia de plenitudes onde nada mais nos apoquenta e tudo nos inspira : o rubor do fim de tarde impressionista flagrado no céu, o canto mavioso de um pássaro, a melodia da chuva no silêncio das madrugadas. O corpo, subjugado ao espírito que voa, voa também leve e solto, liberto das amarras da fisiografia. Cessam-se as dores, curam-se as sofrências todas, desaparecem os maus presságios e a mofina, a expressão ganha altivez, apruma-se a espalda, volta o rubor das faces e despertam-se os desejos adormecidos…

Se não correspondida, no entanto, nada há de mais destruidor. Perde-se o peso a olhos vistos, do rosto some o viço e do olhar o fogo, encanecem-se os cabelos, desvigora-se o espírito. É vida manietada, barco à deriva, turbilhão. Perde-se o sentido do tempo e das responsabilidades. Vira obsessão! Debalde recorre-se ao doutor, ao misticismo, às benzedeiras e às puçangas. Nada, nada cura, nada importa, nada apetece, nada sacia até que se cumpra o tempo de sua vilania.

Para que possamos entender o mal de que padecia Maria Déa, é necessário retornar no tempo, há mais de quatro anos atrás, quando Bentinho veio do interior e passou a viver com a família Gamões. Naquela ocasião, a formosa portuguesa exibia ainda invejável vitalidade para a sua idade, por volta dos cinquenta anos.

A mulher que fora em sua juventude, fogosa e apaixonada pela vida, ainda resistia nela, apesar das marcas impressas pelo tempo e das agruras da emigração. E, se já não possuía o vićo da juventude, era ainda muito atraente para sua idade.

Por força desses predicados de quem sabe driblar as armadilhas do tempo, é que, por vezes, surpreendia-se ainda a sonhar os mesmos sonhos da menina que fora um dia. O rigor do seu caráter, no entanto, sempre fora inviolável cidadela. Ao longo de todos as décadas de casada, jamais sucumbira à imprudência das fantasias…

Nos primeiros anos, porque encontrara no próprio casamento a realização de todos seus desejos de mulher. Depois, mãe extremada, Dedicou-se totalmente à educação dos filhos e à vigília com a saúde destes.

E assim fizera por toda uma vida, sempre a educar seus arroubos de mulher com a serenidade da esposa, depois mãe e por fim avó, como soem proceder espíritos excelsos como o seu.

Tendo três filhos já casados e constantemente ausentes, sentia imensa falta do bulício das crianças na casa, lembranças indeléveis de um tempo de feliz. Por essa razão, foi ela quem mais ardorosamente defendeu a permanência definitiva de Bentinho no Rio de Janeiro. No primeiro momento, apenas por reconhecimento à ajuda que o marceneiro Antonio Bento lhes dera um dia. Depois, porque afeiçoou-se imediatamente ao menino e sonhou ser para este a mãe que ele nunca tivera.

– És um menino bonito, dizia-lhe sempre, e seus olhos transbordavam do luzidio.. És um guapo menino!

À educação do menino, então, passou a dedicar-se inteiramente. Meticulosa, fazia questão de acompanhar de perto suas obrigações escolares e as aulas de francês e piano. Preocupada com sua aparência, eram comuns seus ralhos com as empregadas quando uma camisa não estivesse impecavelmente passada, e disso não se esquecerá jamais Dasdô…

Exigia perfumadas suas roupas de banho e cama, e ordenara à Dasdô que, duas vezes por semana, procedesse a meticulosa faxina no quarto do rapaz. Zelosa com sua saúde, era exigente com o horário das refeições e com a fartura da mesa: “que o leite fosse bem fervido, a carne bem passada, as frutas bem lavadas” … prescrevia, preocupada com as armadilhas do país tropical.

Fazia questão que Bentinho, como já dito, estivesse sempre impecavelmente elegante e, para tanto, continuava a comprar-lhe compulsoriamente do melhor: finas camisas de puro algodão, calças de linho para o verão e de casimira para os tímidos invernos cariocas, sapatos e cintos de couro a combinar entre si, pares e pares de suspensórios “ao gosto europeu”, uma profusão de cuecas e meias…

Na casa Mathias, comprou-lhe um par de abotoaduras em ouro, presente dos seus quinze anos. Pagou verdadeira fortuna! No décimo sexto aniversário presenteou-o com um finíssimo relógio Vulcain suíço, no qual mandou gravar sobre o fundo de ouro: Bentinho.

A cada mês, religiosamente, levava-o ao mesmo barbeiro de Alvaro na Cinelândia, mantendo impecável seu corte de cabelo e, à mesa nas refeições, examinava-lhe as unhas que haviam que estar bem cortadas e limpas.

Dedicava-lhe várias horas do dia em intermináveis conversas e riam a bandeiras desfregadas, como duas crianças inconsequentemente felizes.. Adorava ler para ele e, por suas mãos, Bentinho foi apresentado a La Fontaine, Dumas, Camões, Machado, Eça, Hugo, Cervantes e a todas suas preciosas fantasias…

Resgatou de sua biblioteca um surrado exemplar de Vinte Mil Léguas Submarinas e, juntos, viajavam no abafadiço das tardes pela imensidão revolta de mares desconhecidos.

Bentinho, sob o zelo de seus cuidados, transmutava-se rapidamente do caipirinha de Serrinha dos Cocos num rapaz sofisticado e cosmopolita que a todos encantava. Sua presença dera novo sentido à vida de Maria Déa e era notável como se completavam! Juntos tinham um humor ferino, zombeteando as criadas em brincadeiras sem fim. Ela, como uma dádiva dos céus, sentia-se mãe novamente e esse sentimento e suas decorrentes responsabilidades preenchiam novamente seus dias. O próprio comendador reconhecia que a vinda do menino havia mudado para melhor a rotina da casa. Mais do que isso, sentia-se menos culpado por estar sempre ausente, ele que, de fato, não tinha mais paciência para as conversas da esposa, fosse pela urgência dos seus múltiplos negócios, fosse pelo esfriamento natural de mais de três décadas de vida em comum.

A chegada de Betinho transformou toda a vida dos Gamões e viveu-se um tempo da mais completa felicidade na grande casa da rua das Laranjeiras.

Mas, havia um segredo…

(Continua na próxima semana. Veja os capítulos anteriores aqui.)
 

*Antonio Veronese, pintor ítalo-brasileiro, é autor de obras como “Tensão no Campo” ( Congresso Nacional); “Just Kids” (UNICEF), “Famine” (FAO, Roma) e “Save the Children” (símbolo dos 50 anos das Nações Unidas). Com 80 exposições individuais em 9 diferentes países , Veronese é considerado pela crítica francesa como “um dos dez pintores vivos que já deixaram seus rastros na história da Arte”.

 
 

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