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Antônio Veronese: A História de Bentinho (Capítulo 14 – O Sótão e a Surpreendente Revelação)

Uma sala menor, misto de escritório e biblioteca, exalava o aroma adocicado do fumo do cachimbo do comendador

A casa assobradada da rua das Laranjeiras constituía-se de dois amplos pavimentos totalmente encimados por um sótão. À entrada principal, debruçado sobre o amplo jardim, um pequeno terraço em formato de meia lua, com suas pilastras brancas e piso de ladrilhos florais; depois, uma enorme sala em dois ambientes com poltronas de couro, tapetes arraiolo em tons de vinho e branco, o piso de largas tábuas de peroba do campo e o piano de cauda.

De suas oito janelas laterais, quatro de cada lado, vertia a copiosa luz do jardim. Ao fundo, à direita, uma sala menor, misto de escritório e biblioteca, exalava continuamente o aroma adocicado do fumo do cachimbo do comendador e mais ao fundo ainda, à esquerda, através de um pequeno arco românico, o acesso à elegante sala de jantar com sua mesa de dez cadeiras e uma belíssima cristaleira portuguesa.

Depois, ainda à esquerda da casa e projetando-se em direção ao jardim dos fundos, a copa com sua mesa de madeira rústica; a pequena despensa com dezenas e dezenas de garrafas do bom vinho português; a vasta cozinha com seu enorme fogão à lenha e as panelas de cobre que dona Lourdes mantinha sempre rutilantes, e a porta dos fundos dando para o quintal encimada por exuberante parreira, muda antiga que o comendador mandara trazer de seu distante e saudoso Portugal.

Coberto ainda pelas folhas desta, um caramanchão de teto de vidro ocupando todo os fundos da casa, com bancos de ferro, uma mesa para as refeições íntimas da família e duas redes brancas, franjadas de ricos bordados portugueses, penduradas nos moirões de sustentação. Depois, o verdor do imenso gramado que migrava do jardim fronteiriço pelas laterais da casa, avançando ainda por quarenta metros até os muros brancos do fundo do terreno e os três pequenos quartos das criadas, com suas paredes caiadas de branco e suas janelinhas azuis.

No segundo piso, na parte privada da casa, quatro dormitórios e dois banheiros. Os dois quartos maiores encimando o jardim fronteiriço, um deles ocupado pelo casal, o outro por Bentinho. De cada lado do largo corredor, os dois quartos menores e os banheiros, com suas janelas debruçadas sobre os flancos do jardim. Ao fundo, uma escada em caracol ascendia ao grande sótão com seu piso de tábuas estreitas, iluminado por uma só janela e vasto como cada um dos andares inferiores, que Maria Déa mantinha fechado a sete chaves, aguçando a curiosidade e bisbilhotice das criadas, especialmente Dasdô.

A verdade é que nada ali havia de grande valor: velhos móveis aposentados, arcas e malas corroídas transbordando de reminiscências, fotos amarelecidas e documentos quase ilegíveis, roupas e uniformes da infância dos filhos e outras ainda que tendo sido usadas pelo casal em ocasiões importantes, foram preservadas, apesar de superadas pelos modismos… Ecos d’um passado em que a vida fora mais feliz…

Em uma arca de madeira, em separado da bugiganga, Maria Déa guardava finas toalhas de mesa, reservadas a jantares e ocasiões especiais. E foi esse o motivo que a levou ao sótão naquele fim de tarde quente de dezembro de chuva empacada, ameaçando cair: o comendador receberia um grupo de portugueses em visita ao Brasil e a mesa de jantar deveria estar impecável!

Maria Déa subiu à cata de uma toalha de linho ricamente bordada na Madeira, bem ao gosto da ocasião. Abriu o baú, apanhou-a e já se preparava para descer quando ouviu o ruído característico de um chuveiro que vinha de ser aberto no piso dos quartos, sob seus pés.

O primeiro impulso de descer com a toalha que já tinha nas mãos arrefeceu-se diante de inesperada curiosidade. De onde viria o ruído da água, perguntou a si mesma. Concluiu, então, que se tratava do banheiro próximo ao quarto de Bentinho, no braço esquerdo do corredor, um pouco mais ao fundo, de onde podia vislumbrar, escapando por uma fresta do assoalho, um facho de luz do andar inferior. Uma espada de luz na penumbra do sótão.

Quis retornar à escada, fechar atrás de si a porta e voltar rapidamente aos seus afazeres, mas… sentia-se paralisada, como que tomada d’um inesperado e inexplicável assombro… A casa estava deserta àquela hora, pois o comendador ainda não havia retornado do trabalho e as criadas estavam em seus alojamentos no fundo do quintal, preparando-se para o jantar da noite. E Maria Déa continuava a ouvir o som contínuo da água do chuveiro…

Reagindo a si mesma, dirigiu-se, determinada, à escada em caracol que conduzia ao andar inferior. Mas…não podia! Não conseguia! Parou, então, imersa na solidão do sótão, a meio caminho entre a porta e a luz que brotava, perseverante, das entranhas do assoalho. Olhou ao derredor para certificar-se de que não havia testemunhas, novamente para o facho de luz e, mais uma vez, para a porta entreaberta no topo da escada.

Então, sucumbindo a uma curiosidade desgovernada, tomada por um frenesi desconhecido, a respiração descompassada, os seios arfantes e o coração por saltar boca afora, dirigiu-se, lentamente, silenciosamente, pé ante pé como que arrastada por uma força maior que sua vontade e indiferente a seu recato, em direção à fresta de onde rutilava o facho de luz. Parou junto a este.

Lá fora, subitamente, o rugido impressionante de um trovão fez-lhe explodir o coração numa selvagem cavalgada. A chuva aguardada por dois dias finalmente começou a cair copiosamente, enchendo o sótão com a sagração de sua sinfonia. Relâmpagos espocavam por toda parte e, furtivos entre as grelhas das telhas, iluminavam o interior de inesperada festa, desenhando contra a escuridão a silhueta fantasmagórica da mulher ali paralisada.

Recomposta do susto, Maria Déa olhou ainda uma vez para a porta para certificar-se de que estava sozinha. Então, trêmula como nunca, curvando-se com dificuldade e evitando a todo custo os ruídos da madeira, aproximou o rosto da fresta de luz, por onde, espreitando de um olho só, pôde ver, bem embaixo de si, o corpo rijo e nu de Bentinho sob as águas buliçosas do chuveiro, enquanto lá fora a tempestade transbordava em espasmos de fúria.

Foram dois ou três minutos que pareciam uma eternidade. A água tépida esvaindo pelos ombros, lambendo os cabelos negros do ventre. Os braços fortes, a pernas finas mas torneadas, as brancas nádegas pequenas… Pela posição em que se encontrava, bem acima do banhista, não lhe era possível descobri-lo totalmente, de forma que ela contorcia-se na inútil tentativa de desvendar-lhe todos os segredos… Não era ainda o corpo de um homem; tampouco mais o de um menino!

Subjugada por uma excitação que lhe fazia doer as entranhas, ela ali permaneceu de cócoras, esquecida da porta entreaberta e de seus pudores, o ventre arfando em louca cavalgada, e só voltou a si quando, encerrado o banho, Bentinho afastou-se, em fim, do seu raio de visão.

 

(Continua na próxima semana. Veja os capítulos anteriores aqui)
 
*Antonio Veronese, pintor ítalo-brasileiro, é autor de obras como “Tensão no Campo” ( Congresso Nacional); “Just Kids” (UNICEF), “Famine” (FAO, Roma) e “Save the Children” (símbolo dos 50 anos das Nações Unidas). Com 80 exposições individuais em 9 diferentes países , Veronese é considerado pela crítica francesa como “um dos dez pintores vivos que já deixaram seus rastros na história da Arte”.

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