Foi-se o verão lentamente, levando consigo a modorra dos dias. No final de março choveu torrencialmente dez dias a fio, transbordando o Carioca num enorme aluvião. Entrou um abril mais ameno que tapeçou as ruas do bronze das folhas de amendoeira. Depois, em meados de julho, desembarcou um ventinho frio de sudoeste, ventinho enjoado que foi ficando, ficando…
Tudo corria bem na casa das Laranjeiras. Muito bem! Apresentado e tratado como membro da família, Bentinho passou a preencher a lacuna deixada pela partida dos filhos casados de Maria Déa, trazendo um novo sentido à sua vida.
O comendador impressionava-se com o desvelo da mulher nos cuidados com o menino…Comprou-lhe um guarda-roupa completo, dando-se ao requinte de mandar fazer dois ternos, um de linho branco e outro azul marinho em casimira inglesa, encomendados sob medida ao mestre Severino da Rua do Ouvidor.
Maria Déa dedicava-se diariamente a polir os modos e a refinar as maneiras do menino, a tudo corrigindo e orientando, atenções que, antes que o desagradar, somente envaideciam-no. Bentinho sentia-se o centro das atenções. Matriculado no Colégio São Bento, no centro da cidade, passou a receber ainda aulas particulares de francês e, embora sem revelar nenhum talento musical, foi iniciado no aprendizado do piano, exercitando-se diariamente no Steinway da sala.
De sua rotina passaram a fazer parte fastidiosos jantares em sociedade, o “glamour” das noites no Teatro Municipal, os intermináveis passeios de automóvel pela orla marítima e as belezas de um Rio de exuberantes florestas, portentosas montanhas, praias luxuriantes e exóticos personagens… Um Rio de modismos europeus e ritmos africanos, de uma miscelânea cultural e d’um caldeamento étnico que extasiavam seus olhos acostumados à sensaboria da vida do interior. Vivia um conto de fadas inimaginável para um menino de Serrinha dos Cocos.
Às boas coisas da vida nos acostumamos rapidamente…
A Galinha dos Ovos de Ouro
Logo após a chegada de Bentinho ao Rio, o comendador Gamões, em carta austera e definitiva, deu conta aos Fragoso da nova situação, informando-lhes que manteria o menino sob sua tutela, tendo para isso confiado a seus advogados os procedimentos consoantes.
Censurava veementemente os maus tratos a que ele fora submetido e a improbidade com que fora administrado o dinheiro destinado à sua educação. Atestava, por fim, que só não tomaria medidas mais radicais devido à exiguidade do seu tempo. E encerrava o assunto atribuindo à justiça divina o foro ideal para o julgamento e castigo dos Fragoso.
Em pé, junto ao portão, Lilina leu e releu a longa carta com as mãos trêmulas. Estavam preocupados com o sumiço do menino, tendo até a milícia local, com seus três componentes, sido acionada em vão. Haviam imaginado tudo; afogamento, rapto, fuga para alguma das fazendas da redondeza. Mas jamais poderiam imaginar que o garoto pudesse estar no Rio de Janeiro e, pior ainda, abrigado na casa do comendador. Como teria conseguido?!
A ardilosa mulher bem que tentou imaginar uma estratégia que restaurasse a profícua situação anterior. Mas, por mais que apelasse à imaginação, por mais que especulasse soluções mirabolantes, a realidade intransponível dos fatos a subjugava.
Angustiada, a mofina deu-se conta de que faltavam apenas dois dias para o décimo dia do mês e que, certamente, o dinheiro, que havia chegado religiosamente nos meses anteriores, não mais viria desta vez. Lembrou-se, começando por desesperar-se, das contas e compromissos assumidos com a padaria, o açougue, a farmácia, o armazém de secos e molhados, o mascate, a modista… Explodiu então em fúria e, tremelicando a carnaça da cabeça aos pés, invadiu o quarto onde o marido, às onze horas da manhã de uma quarta-feira, ainda dormia. Em meio a impropérios e safanões, arrancou-o da cama:
– Acorda, desgraçado. Pensas que és rico? Olha aqui, olha isso aqui!!, repetiu enfiando-lhe a carta no rosto como que, mais lesse, quisesse que ele a deglutisse.
O pobre marido, que fora quem menos concorrera para a fuga de Bentinho, suportou calado a fúria incontrolável da mulher. Sabia que em nada adiantaria retrucar que fora ela, com sua rispidez, violência e intransigências, a única razão para a atitude do menino. Era melhor calar-se. Mesmo porque jamais fora capaz de enfrentá-la. Fragosinho a tudo ouviu em resignado silêncio. Então, sem ter mais a quem ofender, Lilina deixou-se cair sentada sobre a cama e chorou copiosamente, ocultando o rosto sob as mãos espalmadas.
A galinha dos ovos de ouro estava morta!
Quatro Anos Depois
Quatro longos anos se passaram, plenos de alegria e de novas experiências no Rio. A vida ia assim como um veleiro em asa de pomba. Perto de completar dezessete anos, Bentinho era agora bem diferente do menino cândido de Serrinha. Esbelto, magro mas forte, inteligente e de cativante personalidade, despertava já o interesse de raparigas na escola e nas recepções oferecidas por Maria Déa. A ele, também, não passavam desapercebidos os predicados femininos revelando, até com uma certa precocidade, especial atenção às questões do amor e da sedução. Era comum, nas conversas com Maria Déa, que procurasse dirimir dúvidas sobre o assunto, muita vez com perguntas constrangedoras que provocavam explosões de riso na negrinha Dasdô, essa sim, insuperável em sua malícia. Debochada, a cativante empregadinha ossuda e cheia de dentes, comentava com Lourdes, a sisuda cozinheira:
– Bentinho está ficando um belo galinho!
Ante a reação de desaprovação de Lourdes, dava de ombros e se afastava gingando as magras cadeiras:
– “Tá percisando é de alguém pra mode de ensiná ele”…
A Menina Noêmia
Em frente à casa dos Gamões, na rua das Laranjeiras, morava um casal com dois filhos, o menino de cinco ou seis anos de idade, e Noêmia a menina de quatorze.
Loura de longas madeixas e pele muito alva, corpo esguio e delicado, Noêmia logo despertou a atenção de Bentinho. Sempre que podia ele ficava à espreita na janela de seu quarto, de onde esticava longos olhares para a casa fronteiriça, especialmente se Noêmia saísse no jardim. A menina, no entanto, parecia absolutamente indiferente à súplica de seus olhares…
Nas manhãs ensolaradas, Noêmia parecia um anjo loiro desfilando entre roseiras em flor, indiferente ao mundo em derredor… às vezes lendo, às vezes contemplativa como se seus pensamentos peregrinassem sem fronteiras … Estudando em escolas diferentes e estando a menina sob constante vigilância dos pais, Bentinho jamais tivera a chance de se aproximar e isso só contribuía para aumentar seu interesse. Para tentar cativar a atenção da etérea musa, colocou sobre o parapeito da janela um pequeno vaso com viçosa flor, da qual cuidava com desvelo.
Por vezes, ao sair pela manhã para a escola, deixava uma pequena “sucrerie” em cavidade do muro junto ao portão de Noêmia, não sem antes certificar-se que esta, de sua janela no segundo andar, discretamente o observava. Por vezes pedia a Dasdô que, sem dar conhecimento à patroa e burlando a vigilância dos pais da moça, entregasse a ela um pequeno bilhete… no entanto, a menina jamais respondera ou demonstrara qualquer interesse.
Ele ainda assim não desistia, intuindo que persistente semeadura pudesse gerar frutos no porvir. Dasdô, cúmplice e solidária, excitadíssima com a situação, procurava orientá-lo em sua estratégia, estimulando-o de toda a forma e acabando por sugerir que escrevesse uma poesia dedicada à menina.
– Mulher se derrete com uma poesia, Bentinho. Tu precisas escrever uma poesia bonita para ela!
Tanto insistiu que Bentinho conseguiu superar a timidez com dois versinhos mancos que a pretinha, diligentemente, depositou junto ao portão da musa: comparava sua beleza à luz da lua, seus cabelos ao fulgor do sol e sua pele ao brancor da neve…
Dois ou três dias de intensa expectativa se passaram sem, no entanto, qualquer retorno que acalentasse suas esperanças. De sua janela, Bentinho buscava, sem sucesso, uma troca de olhares com a bela vizinha que, após o recebimento da poesia, parecia ainda mais distante e desprendida.
Dasdô, então, disse-lhe que o problema não era Bentinho, mas suas poesias, muito românticas e infantis.
– “Tá errado isso Bentinho. Ocê trata a moça como se ela fosse Nossa Senhora da Aparecida. Ocê respeita demais, home !! Moça num gosta disso!”, dizia, para desgosto de Lourdes que, de longe, a repreendia:
– Pára com isso, Dasdô! Estás pondo maldades na cabeça do menino, coisa ruim!
Mas Dasdô insistia:
– O menino tá apaixonado, dona Lourdes. Tenho que ajudar ele. Nenhuma mulher é inocente, ousava dizer com um sorriso cheio de dentes a sustentar sua canhestra filosofia.
Depois, colocando brejeiramente as mãos na cintura, arrematava:
– “Agaranto que aquela rapariga tá se desmanchando toda com o interesse de Bentinho. Mas fica lá com aquela cara de santa do pau oco”.
Maria Déa divertia-se com as primeiras manifestações de interesse de Bentinho pelo sexo oposto. O relacionamento entre os dois, especialmente devido a costumeira ausência do comendador, era cada vez mais intenso e Bentinho, com ela, entregava-se a confidências de menino apaixonado. Nas tardes preguiçosas , passavam horas a fio ao piano com canções francesas e italianas que Maria Déa cantava descontraída, ou então em brincadeiras e encenações das quais participavam todas as criadas enchendo a casa de alegria.
Realmente, a bela portuguesa de Cascais transformara-se radicalmente depois da chegada do menino! A partida dos filhos e a ausência constante do comendador haviam criado uma lacuna que Bentinho vinha perfazer. Antevia as enormes potencialidades do menino e tomara para si a função de lapidar o excelso diamante.
Não passou, também, desapercebido à arguta Dasdô, o inesperado interesse de Maria Déa em renovar inteiramente seu guarda-roupas e retomar cuidados, por anos negligenciados, com sua beleza…