Para você leitor, que insiste em perseguir comigo os meandros desta historieta, a prosopografia de dona Maria Déa exige especial atenção. Não só por ser pessoa querida e admirada de todos, mas especialmente pelo papel fundamental que ela terá na grande transformação da vida de Bentinho.
Com cultura muito acima da média de suas consortes, aprendeu sozinha o francês e o italiano, fruto de sua grande paixão pelo canto lírico. Pianista, de limitados recursos há que se reconhecer, não decepcionava, no entanto, quando, à custa de alguma insistência, sentava-se ao piano para tocar.
Mulher de “alguns anos mais que quarenta”, como gostava de definir-se, guardava ainda muito da beleza da juventude, quando colecionara admiradores na, então, pequena Cascais portuguesa. Longos cabelos negros contrastando com o branco da pele, um rosto fino, desenhado à mão, maxilar “modiglianesco”, lábios marcantes e grandes olhos de um castanho claríssimo, quase garços… olhos de cabra-tonta como já ensinara o maior de todos os Rosas.
Casou-se cedo com o então estudante de direito Álvaro de Almeida Gamões, mudando-se para Lisboa, para tristeza dos inúmeros pretendentes de sua terra natal.
Na capital portuguesa o casal passou por dificuldades, uma vez que todas as iniciativas de Álvaro para ganhar a vida, sucessivamente, resultavam em fracassos. Ainda assim, Maria Déa, vivamente apaixonada pelo marido, tivera forças e determinação para atravessar esses anos difíceis. Ela dela o estímulo constante a amparar do jovem marido dividido entre o esforço por ganhar a vida e os compromissos da vida acadêmica.
No entanto, a pertinácia das dificuldades acabou por obrigá-lo a abandonar o curso de direito. “Queria dedicar-se, por alguns anos, somente aos negócios”, dizia! e, quando a situação melhorasse, voltaria aos estudos.
Esses planos, no entanto, frustraram-se com a vinda precoce dos filhos e com os constantes insucessos de suas iniciativas comerciais. Ainda que diligente e empreendedor, Álvaro Gamões só conseguia colecionar dívidas.
Foi então que, na tentativa de ocultar-se da recorrente desventura, decidiu mudar-se para o Brasil, de onde chegavam relatos que acalentavam suas esperanças. O espírito aventureiro da esposa Maria Déa não impôs dificuldades ao projeto e assim, ao cabo de dois anos de casados, já com dois filhos pequenos e um terceiro a caminho, enfrentaram juntos a grande aventura marítima em direção ao desconhecido e misterioso continente.
O Brasil
Aqui chegando, alugaram uma casinha geminada lá pelos cantos da Gamboa carioca. Espavorida com a primeira impressão que teve da cidade, Maria Déa quis voltar imediatamente a Portugal. Pela primeira vez em sua vida, descobriu homens de cor e belas mulatas com saias rodadas andando pelas ruas da vizinhança, e benzia-se com o sinal da cruz, aterrorizada, ao ouvir o som de atabaques e cantos exóticos nas altas horas da noite.
Foram anos difíceis para a menina portuguesa que, em Cascais, sempre fora o centro da atenção de toda a família.
O novo país assemelhava-se-lhe às chácaras do inferno: a sinfonia inarmônica dos mosquitos nas noites de insônia; a lúgubre privada de fossa e o pavor constante de que um de seus pequenos caísse nas profundezas do fosso escuro; o cheiro forte de urina a eivar os becos da cidade; a casa compartilhada com insetos de toda a sorte e as fezes de morcego que despencavam dos telhados sem forro diretamente sobre a cama das crianças; as visitas noturnas de gigantescas ratazanas esfomeadas, maiores do que as lebres de Cascais; as baratas voadoras a cruzar em esquadrilhas os céus da casa e extravagantes infantarias de formigas de cores e tamanhos até então totalmente desconhecidos; a cozinha, apesar de todo o asseio, tomada por moscas e varejeiras e os armários por fungos e desagradável ranço devidos à humidade; roupas, livros e documentos vitimados pela voracidade assustadora de traças e cupins e a água salobra vomitada pelas torneiras, que ela fervia e refervia antes de dá-las aos filhos…
Para alimentar a família, além do dinheiro curto, tinha que enfrentar a penúria da baiúca d’um português, um pé-sujo da vizinhança onde tudo faltava: carne, hortaliças, peixe, frutas….
Por chacota, dizia ao marido:
-Vou ao mercado, ver o que não tem hoje!
E o clima, santo Deus, o clima!! Uma quentura nunca dantes experimentada! O “verão” em pleno inverno! Dias a fio com temperaturas intoleráveis para oriundos das terras de Gamões… Mais do que com o calor, sofria Maria Déa com as alergias e com o corpo invadido por brotoejas. Em carta enviada aos pais em Portugal, dava-lhes conta que havia que se banhar quatro vezes ao dia e tomar litros de água para resistir à flama do estio.
Temia pela saúde das crianças e sofria pelo desconforto destes. Purgava uma culpa sem fim por tê-las retirado de Portugal, transformando para sempre seus destinos. Foram dois anos assim, nos quais, amiúde, trancava-se no quarto, sozinha nas horas silentes da tarde, e chorava desenganada de tudo.
Essas dificuldades iniciais foram superadas, como anteriormente citado, por inestimável e milagrosa ajuda do então jovem Antonio Bento, à época residindo na mesma vizinhança no Rio de Janeiro. O futuro pai de Bentinho, atendendo ao apelo desesperado do português, que de tanto fanicar sem sucesso fazia pena à vizinhança, emprestou-lhe dinheiro suficiente para a compra de um barzinho imundo, um “buraco” junto ao
Largo da Carioca. O português agarrou-se com unhas e dentes à oportunidade, como se fosse sua última chance. Imediatamente transformou o pardieiro em uma chupada lojinha especializada, acreditem se quiserem, em roupas íntimas femininas… Fadado ao fracasso outra vez, não é? Pois, acreditem se quiserem, contrariando a todas as previsões, foi um sucesso imediato! A malandragem da redondeza passou a ter como surpreender, com ardileza, esposas e moçoilas casadoiras do bairro, ansiosas pelos discretos modismos de França. … A coisa foi tão bem que, no período de quinze meses, Alvaro abriu duas filiais, a maior delas uma grande loja na Avenida Central à qual deu o nome de A CASA DAS SENHORAS!!
E o dinheiro começou a entrar como nunca!
-Terra abençoada, dizia Alvaro à esposa. Nunca tivemos tanto dinheiro, mulher!
Ao cabo de três anos mais, cerca de cinco no Brasil, construíram a grande casa da Rua das Laranjeiras. E Maria Déa, que resistira com bravura aos tempos de vacas magras, refloresceu rapidamente em novos tempos venturosos. Mulher de finos modos, educada no rigorismo português, elegante e desembaraçada, tornou-se de pronto querida na cidade. Na nova e bela casa, os jantares, inicialmente restritos às pessoas do círculo comercial do marido, foram, pouco a pouco, transformados em concorridas recepções de que participavam a nata da sociedade carioca.
Vinte e cinco longos anos se passaram e o Brasil, apesar do ceticismo inicial, dera abrigo a todas as esperanças do casal e Maria Déa, ainda jovial e encantadoramente feminina, conservara muito da beleza que fizera sonhar os rapazolas da distante Cascais.
O compulsório do tempo não lhe roubara totalmente nem a sensualidade, nem a contagiante alegria.
Recebendo Bentinho
Depois de muito falar e de tudo explicar, Bentinho foi levado casa adentro pela mão de Maria Déa.
-Venha, disse-lhe carinhosamente, levando-o ao segundo andar; vou mostrar-te o teu novo quarto.
Uma vez lá, ofereceu-lhe toalhas brancas perfumadas do sândalo de uma grande arca ricamente entalhada com motivos orientais. Deu-lhe ainda espuma de banho francesa e um improvisado pijama do comendador, muitos números acima do seu.
-Tome um bom banho e descanse um pouco. Depois vamos comprar roupas adequadas a um moço tão bonito, disse, fechando atrás de si as pesadas portas de madeira.
Bentinho, a sós no amplo quarto com paredes impecavelmente forradas de tecido floral e largas tábuas de madeira no assoalho, custava crer que tudo fosse real. Era um cômodo grande como ele jamais havia visto, com uma cama de viúva no centro, ventilado e invadido pela claridade do dia. Havia no ar um agradável cheiro da cera que lustrava o chão.
Também “cheirava” a limpeza o amplo banheiro, na porta vizinha do corredor, com sua louçaria branca e belíssimos azulejos portugueses decorados de azul. Admirou longamente as torneiras douradas da pia e a grande banheira repousada sobre quatro patas de leão em metal…
Debruçando sobre a janela, podia-se ver toda a lateral da casa, um canto bem zelado do jardim com enormes tufas de rosas vermelhas e brancas, irruvinhas e primaveras deitando seus mantos rubros sobre o gramado, uma palmeira com seu cacho florido disputado por dois belicosos beija-flores. Retornou seu olhar para o interior do quarto e abriu a enorme janela sobre o jardim fronteiriço com seu belo chafariz e o sussurro constante de suas águas. Dando de costas à janela, observou mais uma vez, desconcertado, cada detalhe do quarto: a arca de madeira, a pesada cama com suas mesas laterais em tampos de mármore; o grande guarda roupas com o espelho oval…aproximou-se, curioso, da grande arca…tateou com mãos de cego os seus baixo relevos; depois levantou sua pesada tampa, tragando longamente, o forte aroma de sândalo que escapava do seu interior.
Por fim, mirou-se no amplo espelho à sua frente. Talvez fosse tudo um sonho, um sonho do qual ele não mais queria despertar.
Lembrou-se, então, da expressão carrancuda de Lilina, perdida nas lonjuras da longa estrada poeirenta. Sem que se pudesse conter, desatou a rir, um riso desabafado, olhos mareados num desafogo das entranhas.
Poucas vezes em sua vida se sentiu tão completamente feliz.