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Antônio Veronese: A História de Bentinho (Capítulo 11 – A Chegada ao Rio de Janeiro)

O burburinho da rua residencial crescia com o avançar das horas

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As péssimas condições da estrada, após uma quinzena de chuvarada, atrasaram em muito a viagem, de sorte que somente na noite do segundo dia o velho caminhãozinho do mascate chegou ao Rio. Trazia em sua carroçaria o nosso intrépido viajante profundamente adormecido, derrotado pela longa jornada. O ponto final foi na Praça Mauá, no centro da cidade.

O mascate foi curto e grosso:

-Desinfeta, moleque e some das minhas vistas. Nosso trato acaba aqui.

Bentinho, ainda confuso pelo sono bruscamente interrompido, obedeceu sem questionar, agora sozinho no mundo por seu destino. Sua primeira impressão da cidade não foi exatamente conforme suas expectativas… Na grande praça, de carroças e animais de toda sorte, fazia um calor infernal e, misturado ao fedor de fezes e urina dos cavalos, vinha um cheiro forte do peixe desembarcado no cais, tornando o ar quase irrespirável.

Apesar da noite, havia grande movimento de homens engravatados e de belas e faceiras mulheres, com vestidos e decotes totalmente estranhos aos olhinhos do nosso capiau.Uma infinidade de automóveis de marcas e modelos desconhecidos e um vai-e-vem constante de bondes elétricos e jardineiras apinhados de gentes em esfuziante falatório.

De repente, o silvo ensurdecedor d’um navio que deixava o porto e Bentinho, tomado de assombro, deu-se conta de que, pela primeira vez em sua vida, estava próximo, muito próximo do mar!

Dirigiu-se, então, sem mais devaneios, diretamente ao cais, boquiaberto com o gigantismo dos navios atracados, as dezenas de barcos outros de toda forma e tamanho balouçando nas águas agitadas do porto, o bulício de suas luzes refletidas na negritude do mar, o vapor dos seus motores espiralando no ar e o falatório desabrido de homens trabalhando nas docas, apesar da noite…

Num impulso, inclinou-se sobre a rebarba do embarcadouro para recuperar com a mão um bom gole da água do porto que meteu gola abaixo:

– É salgada mesmo! Pôde enfim confirmar….

Voltou à praça… tudo era absolutamente novo para ele: a imponência dos edifícios, o vozerio incessante da multidão de transeuntes. Podia ainda ouvir o som cicioso das ondas na pedraria do cais e tragar o perfume da brisa marinha, agora misturada ao delicioso aroma de uma cocada vendida por uma linda mulata de sorriso franco e dentes de marfim.

Num canto da praça, um gordalhão de desabalado bigode exibia, à risada histérica do populacho, um desaventurado macaquinho selvagemente pendurado pelo pescoço e uma cigana, de saia rodada e caninos de ouro, prometia felicidade e fortuna em troca de alguns contos de réis que lhe assegurassem dormir sem o estômago vazio.

Ao longe, ainda, a música hipnótica de um velho realejo com um periquitinho sonolento louco pra ir pra a casa e os proclamas de um vendedor de tapiocas quentinhas que encheram de saliva a boca do nosso pequeno herói.

Na grande avenida desembocando na praça, garbosos casais apeavam de charretes de esbeltas rodas de madeira e, nas portas de bares tantos, guapos engravatados, elegantes e disertos, metidos em ternos de linho e com fumegantes cigarros pendurados nos beiços, ensaiavam galanteria e gracejos a um cortejo incessante de mulheres… Em tudo e por tudo, a eletricidade e a magia da noite carioca!

E o calor, meu Deus, que calor!

Por um instante ainda, Betinho pôde ver ao longe o caminhãozinho vermelho de Mirto desaparecer em meio ao rebuliço da praça. O certo é que o mascate ansiava por se ver livre de sua inesperada “mercadoria”.

O menino, então, preocupado com o avançado da hora, resgatou do fundo do bolso da calça a amarfanhada folha de papel com o endereço manuscrito pela professora Catarina. E, de informação em informação, iniciou longa jornada noite adentro na busca da casa do comendador.

Primeiro, atravessou, de ponta a ponta, a alvoroçada avenida Central; na Cinelândia, admirou em silêncio a imponência do Teatro Municipal, depois o elegante Palácio Monroe, nosso saudoso Senadinho, depois o Passeio Público… Chegou à Praça Paris, com suas flores e chafarizes, vasta e imponente, a extasiar seus olhinhos matutos. Depois à Praça Portugal, de onde admirou demoradamente o fulgir do Outeiro da Glória emoldurado pelo negrume da noite…

O Rio de Janeiro se oferecia a cada esquina com suas luxuriantes extravagâncias, sua beleza única agora a sobrepassar todas as suas mais ousadas fantasias. Cruzou o Russel com seus fícus centenários, às sombras dos quais abrigavam-se furtivos casais e vislumbrou, num relance entre as nuvens, o Cristo de braços abertos como que a abençoar os enamorados.

Depois, passou em revista a tropa de palmeiras perfiladas do Catete, testemunhas silentes da brutalidade de nossa história, chegando, por fim, à Praia do Flamengo, imersa na mansuetude da noite. Sentou-se na areia ainda quente, descobrindo ao longe o perfil negro do Pão de Açúcar, desenhado contra o azul profundo de um céu faiscando de estrelas…Como se sonhasse, descalçou-se e mergulhou os pés na água tépida do mar descobrindo, do outro lado da imensa baía, o luzidio distante de Nicteroy esvaído atrás das cortinas da nevoaça. Depois, marchando sobre a areia fina, foi acompanhando sem pressa os caprichos da praia, embriagado de fascinação.

Só muito mais tarde, quase ao nascer do dia, chegou às Laranjeiras. Por fim, com grande dificuldade, conseguiu localizar a casa apontada no endereço do seu pedaço de papel.

Já estava perdidamente apaixonado pela cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, da mesma forma que se sucederia, décadas mais tarde, ao modesto narrador desta historieta.

Manhã no Bairro das Laranjeiras

A grande casa era uma bela propriedade em estilo neoclássico, pintada de rosa e branco, com duas pilastras de capitéis dóricos no pórtico. No centro do gramado fronteiriço, um chafariz em bronze francês com duas graciosas ninfas portando jarros donde vertiam copiosos jorros d’água. Nas laterais do jardim, duas reproduções da estatuária grega… do lado esquerdo, uma pequena Ártemis caçadora acompanhada de seu dócil cervo e, do lado oposto, uma Vênus ricamente envolvida em mantos diáfanos finamente esculpidos sobre a rijeza do marmo. Nas laterais, uma fulgurante álea de primaveras e o seu rubro abraseado a contrastar com o brancor impecável dos muros.

Fim de madrugada de horizonte afogueado. Muito cedo ainda e Bentinho sem saber o que fazer. Sentou-se ao pé do portão. O cansaço, o sono e a fome roubavam-lhe a exata dimensão de sua audaciosa aventura. Assim, vencido pela cumulação das horas, adormeceu profundamente, encolhido como um feto sobre a calçada de pedras portuguesas.

O dia de estio impôs-se em cores vibrantes por detrás do casario. Bentinho acordou surpreendido pelo sol. Era difícil para ele, acostumado ao frescor da serra, entender tal mormaço àquela hora da manhã. Como soe acontecer, o novo dia e a lucidez matutina contribuíram para que recuperasse um pouco do bom senso abandonado na ambição da aventura.

-Minha Nossa Senhora! O que estou fazendo aqui?!

Talvez nem fosse recebido pelo comendador. Afinal, viera sem avisar a ninguém…Sentiu grande inquietação, um quase arrependimento. Pensou em desistir de tudo. Estava amedrontado e louco para fazer xixi. Que fazer? Voltar atrás? Jamais! Seriam terríveis as punições. Agora tinha que prosseguir a qualquer custo. Faltava-lhe, no entanto, coragem para bater à porta da suntuosa residência. Talvez o mais sensato fosse sair logo dali, procurar outro lugar para ficar, antes que fosse visto. Lembrou-se, então, que estava sem dinheiro pois que tudo entregara ao mascate e o coração foi ficando apertado, apertado…

O burburinho da rua residencial crescia com o avançar das horas. Primeiro o leiteiro, depois o padeiro, um vendedor de doces com seu melodioso pregão “olha o doce docinho”, barulhentos pés-de-bode, tílburis e carrocinhas de entregas e a melodia dos cascos da cavalaria percutindo o granito da rua que começava a encher-se de vida… e ele ali, encasquetado com suas dúvidas, manietado por sua timidez.

Ainda assim, a cidade era puro encantamento aos seus olhos fatigados da rotina do interior. Viu o jornaleiro atirar de sua veloz bicicleta o matutino por sobre o gradil do jardim e sentiu um arrepio nas entranhas quando a porta principal da grande casa se abriu e dela saiu uma criada para recolhê-lo.

O tempo arrastava-se na manhã azul e quente. Faltava um quarto para as oito quando, vestindo impecável terno de linho branco e chapéu, saiu o comendador pilotando seu automóvel, o mesmo chevrolet vermelho gravado na memória de suas fantasias. Bentinho nada fez para chamar-lhe a atenção. Ao contrário, encolheu-se todo para não ser visto, paralisado pela acanhação. Lá se foi o homem rumo ao trabalho, sem reparar no menino encolhido num canto da calçada.

Ainda que se assustasse com a visão do comendador, Bentinho sentiu incendiar-se o coração ao rever seu rosto fraternal. Acompanhou-o com o olhar até a dobra da primeira esquina. Devia tê-lo abordado, pensou, na efervescência de seus pensamentos sem nenhuma lucidez.

A realidade, no entanto, resgatou-o com o borburismo de suas entranhas. Tinha fome, muita fome! Fome como jamais tivera, tão aguda que chegava a sentir falta mesmo da comida de Lilina.

O calor aumentava e o tempo não passava. “Talvez o comendador só voltasse ao final do dia”, pensou. Voltou seu olhar para a grande casa mais uma vez. Diversos empregados começavam a dar ritmo novo à residência recém despertada. Uma empertigada negrinha, ossuda mas formosa, empenhava-se em lustrar as vidraças fronteiriças, remexendo as ancas num bailado cadenciado e sensual, enquanto outra, mais idosa e patusca, metida em impecável uniforme branco, regava o jardim.

O dia avançava lentamente e o cansaço e a fome estavam ficando insuportáveis. O sol remontou de vez o casario das Laranjeiras… sol ardido, tempo mormacento e húmido e ele ali, no abafadiço da calçada, incapaz de qualquer decisão.

Sentia-se totalmente perdido, impotente … De nada valiam agora seus dotes de passarinheiro, arquiteto de arapucas, nem sua astúcia de mestre de pescarias ou sua destreza de alpinista das mangueiras. Peixe fora d’água era o que se sentia, com os pés assando dentro dos sapatos apertados.

Por volta do meio dia novo sobressalto: o comendador retornava à casa pilotando seu bólido. Buzinou à frente do portão principal, prontamente aberto por uma das criadas. Bentinho teve uma vontade louca de correr até lá, de acabar de vez com todo o sofrimento, mas o envergonhamento era maior. Inocência de criança…

Foi então que o calor e a tensão, agravados pela inanição, acabaram por vencê-lo. Sentiu tudo à sua volta rodar, tentou manter-se de pé … em vão . Caiu, como um saco vazio, estatelado junto ao meio fio. Acorreram por seu socorro diversos transeuntes de forma a chamar a atenção do comendador já nos jardins da casa. Ele então, aproximou-se e viu o menino ser colocado no interior de um automóvel improvisado como ambulância.

– Pobre pequeno, comentou.

Já retornava à casa quando surpreendeu-se tentando descobrir “de onde” conhecia aquele rosto. A penúria dos últimos dois dias agravara a magreza e fundara as linhas do rosto de Bentinho, de forma a confundir o português. Ainda assim, o comendador matutava consigo mesmo:

– De onde conheço este guri?

Já se dava por desistir de sua curiosidade quando, como se um raio tombasse-lhe sobre a testa, veio claramente a identificação:

– Santo Deus do céu, é Bentinho!!

Sobressaltado, ainda sem encontrar explicação para sua insólita descoberta, precipitou-se, aos gritos, em direção ao veículo que partia. Parou o automóvel de dentro do qual Bentinho foi arrancado pelo estupefacto português:

-Bentinho, és tu Bentinho !?

E sem mais explicações para os coadjuvantes à boca de cena, atirou-se casa adentro tendo nos braços o nosso mortificado protagonista. A cena que se seguiu é digna de uma comédia pastelão; o desvelo da senhora Gamões para que o menino fosse colocado imediatamente à mesa:

-Há que se alimentar, há que se alimentar!

Foi uma correria das negras da cozinha a acudir o menino com comidinhas e puçangas, com abraços e beijinhos.

Depois, o menino alongou-se com os detalhes de sua epopeia no caminhão do mascate, contados entre a fúria das garfadas sobre a copiosa refeição improvisada, seguidos da teatral exposição dos distratos dos Fragoso e da crueldade de Lilina…

Ao cabo de duas horas, prolixamente, Bentinho inteirara a todos da extensão de seu drama, além de saciar-se da fartura da mesa. A todos comoveu. No comendador, mais que comoção, provocou fúria pelo descuido com o menino apesar do dinheiro que assiduamente enviara e, mais que isso, um desejo de exigir satisfações e tomar atitudes mais contundentes. Mas a voz pacificadora da esposa Maria Déa interveio a relaxar os ânimos.

-Deixes disso, meu bom marido. Aqui o menino estará seguro!, disse, envolvendo Bentinho num abraço maternal…

(Continua na próxima semana. Veja os primeiro cinco capítulos aqui)
 
A história do Bentinho

*Antonio Veronese, pintor ítalo-brasileiro, é autor de obras como “Tensão no Campo” ( Congresso Nacional); “Just Kids” (UNICEF), “Famine” (FAO, Roma) e “Save the Children” (símbolo dos 50 anos das Nações Unidas). Com 80 exposições individuais em 9 diferentes países , Veronese é considerado pela crítica francesa como “um dos dez pintores vivos que já deixaram seus rastros na história da Arte”.

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