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Os reveses que sofrera ainda em tenra idade haviam melhor forjado Bentinho para os desafios da vida. Tornara-se cauteloso, introspectivo, sempre calado na casa dos Fragoso; mesmo na escola, com ninguém mais repartia seus segredos. Perdera, com a morte da professora Catarina, sua única e confiável confidente. Prudentemente, enterrou a caixinha de música, contendo o dinheiro e o bilhete, numa cova rasa na elevação à margem do rio, sob um grande jatobá, tomando o cuidado de protegê-la contra a umidade. À curiosidade de Lilina resistiu com bravura, aguentando sopapos e privações, sem nada revelar.
Por fim, viu-se diante de um novo problema: sendo menor de idade, não poderia embarcar sozinho na jardineira para Itirapina, de onde partia o trem para o Rio. Tinha dinheiro suficiente para a viagem, pois a bondosa professora disso cuidara com abastança. Mas havia esse impedimento de viajar sozinho e não sabia como contorná-lo. Pedir ajuda aos Fragoso estava totalmente fora de cogitação, uma vez que sua ida para o Rio significaria o fim da renda mensal de 10 contos de réis e, a isso, eles jamais renunciariam. O problema parecia insolúvel.
Sem saber o teor da conversa havida entre Bentinho e a irmã da professora Catarina e desconfiada de que algo se tramava às suas costas, Lilina transformou-se para pior, arrispidando-se mais e mais a cada dia, de forma que o menino, depois da escola, procurava passar quase todo o dia fora, no mais do tempo sob a frondosa árvore à margem do rio onde repousavam todas as suas esperanças. Retornava à casa somente no fim das tardes e nas pontas dos pés para não ser notado. Por força disso, muita vez, dormia sem se alimentar. Foi quando, um acontecimento corriqueiro, alumiou uma esperança.
Na quinta-feira, como em todas as primeiras quintas de cada mês, bem cedinho, como de costume, chegou à cidade o caminhão de Mirto, conhecido mascate que abastecia toda a região com produtos vindos diretamente da capital.
Chegava e estacionava na praça da matriz de onde, com um possante auto-falante, chamava a atenção de todos para “a beleza dos tecidos franceses, o requinte dos sapatos ingleses, o garbo dos chapéus e bengalas da Casa Reis…” Mirto era também uma espécie de conselheiro de elegância para senhorinhas casadoiras, preocupadas com suas aparências, ávidas por novidades e maridos…e, por isso, sua chegada era sempre muito aguardada.
Betinho, preocupado em não deixar escapar a oportunidade, montou guarda à distância, até que todos os fregueses fossem atendidos. Ao cair da noite, quando Mirto preparava-se para partir, aproximou-se e perguntou, a seco, quanto custaria para ser levado até o Rio de Janeiro.
O velho mercador, surpreso com a questão, pediu-lhe que não o incomodasse;
– Vá procurar teus pais, guri. Vá para tua casa!- reagiu.
Mas Bentinho insistiu. Disse-lhe que perdera seus pais, mas que havia um parente no Rio que poderia ajudá-lo. O homem continuou a não lhe dar atenção, enquanto recolocava no caminhão a mercadoria remanescente.
– Tenho dinheiro para pagar- insistiu o menino. Leva-me para o Rio de Janeiro.
Mirto, já quase por terminar a arrumação desafiou-o :
– E lá um pequeno como tu há de ter algum dinheiro?
Bentinho então, num gesto teatral, sacou do bolso o polpudo maço de notas, exibindo-o ao incrédulo bufarinheiro.
– Onde arrumaste esse dinheiro, menino?
Bentinho contou toda a história desprezando os detalhes. Estava aflito, olhando em volta da praça deserta, apreensivo que alguém dos Fragoso aparecesse por ali.
O mascate ouviu sem interromper e, ainda que achasse tudo muito estranho e que o bom senso o alertasse para a imprudência que estava a ponto de cometer, não resistiu à pergunta que a cupidez lhe provocava:
-E quanto dinheiro tens aí, guri?
-Mil e oitocentos réis, respondeu o menino. É tudo teu se me levares ao Rio de Janeiro.
Pobre mascate! Era dinheiro equivalente a um mês de trabalho duro perdido por essas estradas de Deus. Lembrou-se dos pleitos dos filhos sempre adiados, sempre adiados… a bicicleta do caçula, os vestidinhos das meninas, o novo rádio sonhado pela patroa…
Olhou ao redor como que a se certificar de que não havia testemunhas. A praça estava deserta e triste, com um cão tísico dormindo torto sob o pórtico da matriz. Então, num gesto brusco, arrancou o dinheiro das mãos do menino e, agarrando-o pelo fundo das calças, atirou-o por sobre a “marchandise” num buraco no fundo da carroceria. O menino assustado disse-lhe que não poderia ir imediatamente, que haveria que pegar suas roupas primeiro.
-Nada feito, retrucou Mirto. Vamos já ou nunca e se alguém te encontrar aí direi que és um clandestino. Entendido? Para todos os efeitos, eu não sei que estás aí.
Dito isso, jogou por sobre Bentinho a pesada lona com a qual protegia as mercadorias da chuva. E foi assim, entre sensuais vestidos de seda, exótica lingerie francesa e aristocráticas bengalas, que nosso herói partiu rumo à sua grande aventura na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.
A longa viagem
A viagem foi longa e extremamente desconfortável. Mal acomodado entre as caixas de papelão, sofrendo toda sorte de solavancos, Bentinho via, apesar da noite, transformar-se pouco a pouco a paisagem, enquanto seu pensamento voava em desatino:
– O que estariam pensando lá em Serrinha? Estariam preocupados com sua ausência?
E depois, sentindo um friozinho na barriga, indagava-se:
– E o Rio de Janeiro, a cidade grande de seus sonhos, como seria?
O caminhão avançava lentamente devido às agruras da estrada, transpondo penosamente a serra, revelando pouco a pouco novos horizontes. Na crista da serrania, aos primeiros raios do novo dia, descortinou-se todo um vale verdejante, com o corso escuro d’um rio serpenteando entre as grandes pedranceiras. À esquerda, vastas plantações de café de um verde escuro e profundo. À direita, infinita pastaria e gado a perder de vista. Ao fundo, no limite das distâncias, quase despencando nas dobras do horizonte, o bosquejo impreciso e derradeiro de Serrinha em meio à névoa escura que descia como magma dos contrafortes da serra dos Martelos.
Depois de vencida a cordilheira, já à luz do novo dia, entraram por uma planície de lonjuras, com uma sucessão de fazendolas e o branco das suas sedes refletindo o fulgor do sol. Grandes invernadas, o mugido dos rebanhos e um cheiro adocicado de bosta no ar.
Cruzaram um rio barrento com sua ponte românica de arcos de granito, depois o crânio de um zebu espetado num moirão da cerca. Mais adiante, uma majestosa mangueira solitária no centro do pasto, rodeada da criação socorrida pelo frescor de sua umbrosa copa. Depois um bando de peões aboiando uma tropa, o repique surdo dos cascos contra a terra batida, o som fundo d’um berrante e, de repente, uma gadaria atravessada na estrada, atrasando o curso, esticando o tempo de viagem.
Por volta de Torrinhas das Pedras, embarcou de carona um capiauzinho mirradinho, chapéu de aba larga, viola debaixo do braço e um pitinho de palha no canto da boca:
-Boas tardes, diz o homenzinho, por trás do largo sorriso. Podes me levar até Vila das Mercedes?
O mascate ofereceu lugar na cabine, mas ele preferiu o fresco da carroçaria e, com sua violinha de doze cordas, que ele “seresteia” estrada afora …
Vou te prender na gaiola,
Vou te amarrar no pau
chora chora a viola
chora, chora jurutau.
Chora inhambú no mato
Chora, chora urutau
Vou te prender na gaiola
vou te amarrar no pau…
canta o homem, enquanto o “camiãozinho” enfrenta a desgraceira do estradão.
E passam gentes e mais gentes, caras novas e o marfim de sorrisos inocentes; os muafos coloridos de belas caboclas e a paleta multicor da roupa quarando sobre o capim forrageiro… novidades que os olhos singelos do menino “degustam” em silêncio. Aqui e ali, uma freguesia perdida com o povoléu à porta do botequim e a criançada correndo atrás da poeira do caminhão…
Já era quase noite quando pararam em uma pequena estalagem à beira da estrada.
– Desce, moleque, disse-lhe o mascate, que hoje dormimos aqui. Amanhã saímos bem cedinho.
O capiauzinho da viola apeou também, agradeceu a carona e foi-se embora, viola nas costas com seu passo gingado e seu canto triste:
“vou te prender na gaiola,
vou te amarrar no pau…”
A noite desceu em silêncio, saindo do céu uma imensa lua cheia quando, à luz de lamparinas, a dona da estalagem, uma cabocla nova e pudente, serviu arroz com feijão, um bagrinho frito e, de sobremesa, banana da terra cozida. Comeram sem falar e recolheram-se à cama, os corpos moídos, esfalfados pelo soca-soca da viagem.
(Continua na próxima semana. Veja os primeiro cinco capítulos aqui)