Em uma realidade em que o alívio rápido se impõem como necessidade cotidiana, o uso de medicamentos passou a integrar hábitos aparentemente inofensivos. Analgésicos, antialérgicos, reguladores gástricos, comprimidos discretos, sempre ao alcance das mãos, guardados em bolsas, gavetas ou sobre mesas de cabeceira, oferecem respostas imediatas a desconfortos rotineiros. No entanto, quando esse uso se torna frequente e não supervisionado, pode inaugurar, de forma sutil, um processo de dependência difícil de perceber e ainda mais difícil de interromper.
A dependência relacionada ao uso de medicações psicoativas configura-se como uma forma específica de transtorno por uso de substâncias, frequentemente subdiagnosticada ou minimizada, tanto pelos próprios pacientes quanto por parte dos profissionais de saúde. Ansiolíticos, sedativos e analgésicos opióides estão entre os agentes mais frequentemente envolvidos nesses quadros. Embora legalmente prescritos, seus efeitos sobre o sistema nervoso central podem produzir alterações relevantes no funcionamento cognitivo e emocional, com potencial de provocar prejuízos comparáveis aos observados em substâncias ilícitas.
Frequentemente, o uso tem início de maneira legítima, vinculado a um tratamento formal para insônia, transtornos ansiosos ou dores crônicas. O risco se intensifica quando esse tratamento se prolonga sem reavaliações periódicas, ou quando o paciente, sentindo-se habituado à resposta do organismo, decide aumentar a dose ou estender o uso por conta própria, desenvolvendo padrões de uso nocivos à saúde.
Os benzodiazepínicos exemplificam bem esse cenário. Comumente prescritos para tratar quadros ansiosos, distúrbios do sono e crises de pânico, produzem alívio rápido e eficácia perceptível em curto prazo. Essa resposta imediata, no entanto, pode favorecer o uso prolongado, mesmo quando a indicação clínica já não se sustenta.
Ao reduzir a atividade do cérebro, os benzodiazepínicos, popularmente conhecidos como “calmantes”, promovem uma sensação de relaxamento e controle da ansiedade. Contudo, o uso contínuo pode gerar tolerância, exigindo doses progressivamente maiores, além de produzir dependência física e psicológica. Entre os sintomas associados ao uso crônico estão rebaixamento do nível de atenção, alterações de memória, instabilidade emocional e condutas impulsivas.
A representação ficcional da personagem Victoria Ratliff, na série The White Lotus, ilustra alguns desses efeitos. Vemos uma mulher constantemente sonolenta, com dificuldades cognitivas evidentes, fala arrastada e episódios de desorientação, incluindo um momento em que adormece à mesa durante um jantar. Embora se trate de um enredo dramatizado, retrata com precisão os efeitos cumulativos da exposição prolongada a substâncias psicoativas.
Estima-se que cerca de 50% dos indivíduos que utilizam benzodiazepínicos por períodos superiores a um ano desenvolvem sintomas relacionados à abstinência. O risco se eleva significativamente quando há associação com álcool ou substâncias estimulantes, como a cafeína. Essas combinações podem mascarar os efeitos da medicação ou intensificá-los de forma imprevisível, favorecendo acidentes, comprometimento neurológico e, em situações extremas, eventos fatais.
Apesar das exigências legais para prescrição e controle, como a obrigatoriedade da receita do tipo B, de cor azul, observa-se, no Brasil, uma ampla disponibilidade desses fármacos, inclusive em contextos onde o controle deveria ser mais rigoroso. Dados da Anvisa indicam um aumento superior a 50% no consumo de benzodiazepínicos ao longo da última década, com mais de 345 mil caixas comercializadas em território nacional.
Um aspecto frequentemente negligenciado é a dependência de natureza psicológica. Mesmo diante da orientação médica para suspensão gradual do uso, muitos pacientes demonstram resistência, sustentada pela crença de que não conseguirão manter estabilidade emocional, qualidade de sono ou desempenho funcional sem o auxílio da substância. Essa percepção subjetiva de incapacidade tende a perpetuar o uso, mesmo quando os efeitos terapêuticos já não se justificam.
Diante desse cenário, é fundamental compreender que o objetivo do tratamento não deve ser apenas o alívio imediato dos sintomas, mas a restauração integral da saúde mental. Psicoterapia, mudanças no estilo de vida, práticas de higiene do sono, alimentação balanceada e atividade física regular são ferramentas indispensáveis nesse processo. O uso de medicações deve ser sempre conduzido com responsabilidade e acompanhamento profissional. Caso perceba que não consegue mais se desvincular de determinada substância, busque o apoio especializado de um médico psiquiatra. A dependência é tratável e a recuperação é possível. Se precisar, peça ajuda!
*Antônio Geraldo da Silva é médico formado pela Faculdade de Medicina na Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES. É psiquiatra pelo convênio HSVP/SES – HUB/UnB. É doutor pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto – Portugal e possui Pós-Doutorado em Medicina Molecular pela Faculdade de Medicina da UFMG.
Entre 2018 e 2020, foi Presidente da Associação Psiquiátrica da América Latina – APAL. Atualmente é Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Diretor Clínico do IPAGE – Instituto de Psiquiatria Antônio Geraldo e Presidente do IGV – Instituto Gestão e Vida. Associate Editor for Public Affairs do Brazilian Journal of Psychiatry – BJP. Editor sênior da revista Debates em Psiquiatria. Review Editor da Frontiers. Acadêmico da Academia de Medicina de Brasília. Acadêmico Correspondente da Academia de Medicina de Minas Gerais.