Todos os dias, em silêncio, milhares de crianças e adolescentes são violados em sua dignidade mais elementar: o direito à integridade física, emocional e psíquica. No Brasil, esse cenário é alarmante. Segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), apenas nos primeiros meses de 2023, foram registradas 9,5 mil denúncias e 17,5 mil violações relacionadas a violência sexual, incluindo abuso, estupro, exploração e agressões de ordem psicológica. A realidade, no entanto, é ainda mais cruel, pois a subnotificação é regra e não exceção.
A violência sexual na infância e adolescência é devastadora. Suas marcas não se restringem ao tempo do acontecimento, elas reverberam por anos, às vezes por toda a vida. Romper o silêncio é um gesto de responsabilidade coletiva. Falar, esclarecer, educar e agir são passos indispensáveis para transformar essa realidade e proteger nossas crianças.
Um dos maiores obstáculos ao enfrentamento dessa violência é o reconhecimento dos sinais. A criança, frequentemente, não dispõe de repertório emocional ou cognitivo para nomear o que está acontecendo. E o adolescente, muitas vezes, é silenciado pelo medo, pela vergonha ou pela culpa indevidamente introjetada. Mudanças comportamentais abruptas, retraimento, resistência ao contato físico com determinados adultos, regressões no desenvolvimento, distúrbios do sono e do apetite, queda no rendimento escolar, irritabilidade ou hiperssexualização podem ser indicativos de um sofrimento profundo que
precisa ser escutado com atenção e responsabilidade.
A literatura científica é consistente ao demonstrar a correlação entre abuso sexual na infância e o surgimento de diversos transtornos mentais ao longo da vida. Entre os mais frequentes estão a depressão, os transtornos de ansiedade, o estresse pós-traumático e os transtornos alimentares. Em casos mais graves e prolongados, observa-se risco aumentado de comportamento suicida. Há, ainda, a relação desse tipo de vivência traumática à formação de transtornos de personalidade, cujas raízes, muitas vezes, remontam a infâncias marcadas por negligência, violência e violação.
Também não se pode negligenciar os impactos físicos do abuso. Além do risco de doenças sexualmente transmissíveis e da possibilidade de gravidez precoce, é comum que a experiência interfira negativamente na construção da identidade sexual e no desenvolvimento de vínculos afetivos saudáveis, gerando, na vida adulta, comportamentos disfuncionais nos relacionamentos.
O 18 de maio, Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, deve ser mais do que uma data simbólica. É um chamado ético. Um apelo à mobilização social. Precisamos, como sociedade, transcender o gesto pontual da conscientização e demandar políticas públicas eficazes, estruturadas e sustentáveis de prevenção, acolhimento e responsabilização. Nossas crianças não podem esperar.
Diante de qualquer indício, por mais sutil que pareça, a denúncia jamais será um exagero. Quando se trata da integridade de nossas crianças e adolescentes, a dúvida não deve ser um argumento para o silêncio, mas uma razão para o cuidado. As denúncias podem ser feitas, inclusive de forma anônima, pelo Disque 100.
Proteger é um verbo que para conjugá-lo na forma de ação exige coragem. A coragem de não fingir que não viu, de não silenciar diante da dúvida, de não correr o risco de ser conivente com o irreparável. A infância, uma vez violada, não volta atrás. A omissão tem o poder de transformar uma vida que poderia ser luz em uma trajetória marcada pela escuridão. Diante de qualquer indício, por menor que pareça, denuncie. Disque 100. Se precisar, peça ajuda!
*Antônio Geraldo da Silva é médico formado pela Faculdade de Medicina na Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES. É psiquiatra pelo convênio HSVP/SES – HUB/UnB. É doutor pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto – Portugal e possui Pós-Doutorado em Medicina Molecular pela Faculdade de Medicina da UFMG.
Entre 2018 e 2020, foi Presidente da Associação Psiquiátrica da América Latina – APAL. Atualmente é Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Diretor Clínico do IPAGE – Instituto de Psiquiatria Antônio Geraldo e Presidente do IGV – Instituto Gestão e Vida. Associate Editor for Public Affairs do Brazilian Journal of Psychiatry – BJP. Editor sênior da revista Debates em Psiquiatria. Review Editor da Frontiers. Acadêmico da Academia de Medicina de Brasília. Acadêmico Correspondente da Academia de Medicina de Minas Gerais.