Em tempos de respostas instantâneas e soluções automatizadas, tornou-se cada vez mais comum recorrer à internet, e, mais recentemente, à inteligência artificial, como fonte primária de esclarecimento sobre questões de saúde. A praticidade dessas ferramentas, aliada à promessa de rapidez e autonomia, tem levado muitas pessoas a substituir o encontro com o profissional de saúde por uma consulta virtual com algoritmos. No entanto, quando o que está em jogo é o diagnóstico de uma condição clínica, esse atalho pode custar caro. Ao ignorar a complexidade do corpo, da mente e do contexto de vida de cada indivíduo, corre-se o risco de transformar a busca por cuidado em uma experiência de desencontro, desinformação e insegurança.
Investigar sintomas por conta própria, seja em buscadores online ou por meio de inteligência artificial, pode parecer uma atitude prática e até inocente. No entanto, as respostas obtidas nem sempre têm embasamento científico, podendo ser genéricas, imprecisas, alarmistas ou equivocadas. Indivíduos em contextos de maior vulnerabilidade emocional, como aqueles que convivem com transtornos ansiosos, podem interpretar essas informações de maneira rígida, o que, em vez de esclarecer, aprofunda a sensação de confusão e torna a vivência ainda mais difícil.
Um dos efeitos mais delicados desse acesso irrestrito ao conteúdo médico é o autodiagnóstico. Basta digitar um sintoma para se deparar com uma lista de hipóteses que vai de causas triviais a quadros clínicos graves. Esse excesso de possibilidades pode gerar angústia, alimentar fantasias catastróficas ou, ao contrário, banalizar sinais que merecem atenção especializada. A fronteira entre alívio e desespero, nesses casos, pode ser decidida por um algoritmo.
A formulação de um diagnóstico médico, especialmente no campo da psiquiatria, exige muito mais do que o cruzamento automatizado de dados. Trata-se de um processo que requer escuta qualificada, exame clínico, observação minuciosa de sinais físicos e emocionais, compreensão da trajetória de vida do paciente, de seu contexto sociocultural e de sua rede de relações. A medicina, sobretudo no que diz respeito às doenças mentais, pressupõe encontro, vínculo e cuidado, não apenas lógica técnica.
A medicina contemporânea tem evoluído para um modelo cada vez mais personalizado, integrativo e empático. Tratar apenas a doença, ignorando a experiência vivida pelo paciente, já não condiz com as diretrizes da prática médica atual. Hoje, compreende-se que manifestações semelhantes podem ter origens diversas e que nenhum quadro clínico é idêntico a outro. Na psiquiatria, não se cuida de um diagnóstico, mas de uma pessoa com uma doença mental, com sua história, seus afetos e sua complexidade.
Diversos transtornos mentais, como os transtornos de humor e os quadros psicóticos, envolvem riscos significativos, inclusive o suicídio, e requerem acompanhamento especializado contínuo. A formação de um psiquiatra demanda, no mínimo, nove anos, entre a graduação em medicina e a residência médica. Nenhuma tecnologia, por mais avançada que seja, é capaz de substituir o julgamento clínico, a capacidade de escuta, a sensibilidade para nuances emocionais ou a ética que orienta a atuação profissional.
Um fenômeno recente, e que merece atenção, é o vínculo afetivo que algumas pessoas vêm desenvolvendo com ferramentas de inteligência artificial. Em momentos de solidão ou fragilidade, essas tecnologias podem ser percebidas como figuras de confiança, pela rapidez nas respostas, pela ausência de julgamento ou pela disponibilidade constante. O risco é que essa relação virtual, por mais reconfortante que pareça, adie ou substitua o acesso ao cuidado humano, ético e presencial.
A inteligência artificial pode, sem dúvida, ser uma aliada poderosa da medicina. Ela contribui com a sistematização de dados, a aceleração de pesquisas, o aprimoramento de exames e o desenvolvimento de terapias mais eficazes. No entanto, por sua própria natureza, muitas vezes entrega ao usuário exatamente aquilo que ele deseja ouvir, reforçando convicções preexistentes e evitando confrontos que poderiam ser terapêuticos. Diferente de um profissional qualificado, que implica o paciente no processo de cuidado e o confronta, com ética e responsabilidade, quando suas escolhas são prejudiciais ou perigosas, a IA não se pauta por princípios clínicos, não estabelece limites e não exerce discernimento. Quando utilizada como substituto, especialmente no contexto das doenças mentais, pode confundir, desinformar e ampliar os riscos.
A internet pode ser útil quando empregada como instrumento de apoio após o atendimento profissional. Pode servir para revisar orientações clínicas, aprofundar o entendimento sobre o tratamento proposto ou reforçar informações transmitidas em consulta. No entanto, o ponto de partida deve ser, sempre, uma escuta qualificada, feita por quem tem formação, experiência e compromisso com o cuidado humano. Lidar com uma doença mental exige responsabilidade, conhecimento técnico e presença clínica.
As profissões da saúde estão bem, sim, quando preservam o que nenhuma tecnologia é capaz de replicar: o vínculo humano. Estão bem quando não se rendem à pressa, ao automatismo ou à sedução dos dados isolados. A inteligência artificial não adoece, não sofre perdas, não carrega memórias afetivas, não conhece angústias nem lutos. Ela não sente vergonha ao pedir ajuda, nem resistência ao recebê-la. Não enfrenta dilemas éticos, não é tocada pelo silêncio, não vive as contradições do existir. Por isso, jamais poderá compreender verdadeiramente o que é cuidar. Cuidar exige presença, discernimento, escuta e coragem de implicar-se no sofrimento do outro. Não procure apenas respostas genéricas, procure ajuda de um profissional. Se precisar, peça ajuda.
*Antônio Geraldo da Silva é médico formado pela Faculdade de Medicina na Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES. É psiquiatra pelo convênio HSVP/SES – HUB/UnB. É doutor pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto – Portugal e possui Pós-Doutorado em Medicina Molecular pela Faculdade de Medicina da UFMG.
Entre 2018 e 2020, foi Presidente da Associação Psiquiátrica da América Latina – APAL. Atualmente é Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Diretor Clínico do IPAGE – Instituto de Psiquiatria Antônio Geraldo e Presidente do IGV – Instituto Gestão e Vida. Associate Editor for Public Affairs do Brazilian Journal of Psychiatry – BJP. Editor sênior da revista Debates em Psiquiatria. Review Editor da Frontiers. Acadêmico da Academia de Medicina de Brasília. Acadêmico Correspondente da Academia de Medicina de Minas Gerais.