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Antonio Geraldo: Patologização de sentimentos e respeito à saúde mental

Emoções inerentes à vida humana passaram a ser rotuladas como doenças

Jamais se falou tanto em saúde mental. Por um lado, isso representa um avanço civilizatório, afinal, temas que antes eram interditados socialmente ganharam voz. Por outro lado, nunca se diagnosticou tanto, e nem sempre de forma criteriosa. A avalanche de vídeos nas redes sociais sobre TDAH, burnout, ansiedade e outras condições psiquiátricas popularizou esses termos, a ponto de transformar diagnósticos em símbolos de pertencimento, quase como selos identitários. O que antes era alvo de estigma, hoje, por vezes, se converte em status, esvaziando a gravidade que determinadas condições realmente impõem a quem delas padece.

Há uma linha tênue e perigosa entre democratizar o acesso à informação sobre saúde mental e vulgarizar conceitos clínicos extremamente sérios. Emoções inerentes à vida humana passaram a ser rotuladas como doenças. Cansaço virou burnout, tristeza virou depressão, e distração foi alçada a TDAH. Ao fazer isso, corremos o risco de desumanizar aquilo que é próprio da experiência de viver, transformando qualquer sentimento em patologia. Psiquiatrizando o cotidiano.

É absolutamente legítimo sentir tristeza após o fim de um relacionamento, sentir angústia diante de uma perda, viver períodos de insegurança, frustração ou inquietação. Esses sentimentos não são indicativos, por si só, de doença mental. Eles são expressão da própria condição humana, e não devem ser tratados como sintomas de uma doença sempre que se manifestam. Nem toda dor precisa que seja usada uma medicação. Nem toda experiência desconfortável exige um diagnóstico médico.

Um exemplo emblemático é a apropriação irresponsável de termos como “hiperfoco”, que se tornou nas redes sociais quase um sinônimo de qualquer interesse mais aprofundado por algo. Na realidade, hiperfoco é um fenômeno psíquico complexo, associado, por exemplo, ao Transtorno do Espectro Autista e ao TDAH. Não se trata de mera concentração, mas de um padrão de atenção que, embora traga ganhos em alguns contextos, também pode gerar prejuízos significativos em outros. Reduzir isso a um adjetivo ou uma característica charmosa é desrespeitoso com quem vive, de fato, as implicações dessa condição.

O mesmo vale para quem banaliza termos como TOC, bipolaridade, borderline, narcisismo e tantos outros, utilizando-os como adjetivos para justificar sentimentos, comportamentos, excentricidades ou, até mesmo, posturas irresponsáveis diante da vida. Quando se faz isso, não se está apenas cometendo um equívoco semântico. Isso contribui para a construção de uma sociedade que naturaliza o preconceito, que desqualifica o sofrimento alheio e que, perigosamente, transforma o adoecimento mental em piada, modismo ou desculpa conveniente.

Precisamos refletir, de forma profunda e ética, sobre quando foi que começamos a reduzir o adoecimento humano a memes, trends e autodiagnósticos superficiais. E, mais do que isso, é preciso compreender que transformar sintomas em adjetivos não é apenas desinformação, mas também uma forma de violência simbólica contra quem, de fato, convive com transtornos mentais graves. Não há nada de poético, bonito ou romântico no diagnóstico de uma doença mental. E, definitivamente, sintomas não são atributos de personalidade.

Esse tipo de prática, que vulgariza e esvazia o sentido técnico dos diagnósticos, além de antiético, pode configurar responsabilidade social, cível e, em determinadas circunstâncias, até criminal. Afinal, quando alguém se apropria, de forma desonesta, de um diagnóstico ou de sintomas de uma condição para obter vantagens, para se eximir de responsabilidades ou para mascarar condutas reprováveis, incorre num ato que, à luz do direito, dialoga diretamente com fraudes, estelionatos morais ou até com discriminação equiparável a práticas como racismo, xenofobia e capacitismo.

É urgente que a sociedade compreenda que transtornos mentais são condições médicas complexas, diagnosticadas exclusivamente por profissionais habilitados, como médicos psiquiatras, a partir de critérios clínicos rigorosos. Nada disso pode ou deve ser substituído por vídeos de internet, testes de revistas ou autoatribuições leigas.

Isso não significa, de forma alguma, que os sentimentos devam ser ignorados ou minimizados. Pelo contrário, eles são bússolas emocionais essenciais para nossa própria saúde mental. Sentir tristeza, ansiedade, medo ou desânimo é parte da vida, e esses estados emocionais servem justamente como sinalizadores de que algo merece atenção, cuidado, reflexão ou transformação. No entanto, sentimento não é diagnóstico. Sentimento não deve ser sequestrado por uma lógica de patologização desenfreada.

Por tudo isso, é preciso devolver à saúde mental a seriedade que ela exige. Mais do que nunca, é necessário resgatar o respeito por quem padece de doenças mentais, pois são pessoas que vivem, diariamente, os desafios impostos por uma condição involuntária. Isso não se faz romantizando sintomas, tampouco trivializando diagnósticos. Faz-se com informação de qualidade, com ética, com responsabilidade e, sobretudo, com empatia. Se seus sentimentos estão difíceis de carregar, procure ajuda. Mas, por favor, não transforme em adjetivo aquilo que, para muitos, é dor, limite e luta diária pela dignidade.

Psicologizar ou psiquiatrizar o cotidiano, não é apenas um erro, é uma irresponsabilidade gravíssima. Se precisar, peça ajuda!

Antonio Geraldo: Patologização de sentimentos e respeito à saúde mental

*Antônio Geraldo da Silva é médico formado pela Faculdade de Medicina na Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES. É psiquiatra pelo convênio HSVP/SES – HUB/UnB. É doutor pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto – Portugal e possui Pós-Doutorado em Medicina Molecular pela Faculdade de Medicina da UFMG.

Entre 2018 e 2020, foi Presidente da Associação Psiquiátrica da América Latina – APAL. Atualmente é Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Diretor Clínico do IPAGE – Instituto de Psiquiatria Antônio Geraldo e Presidente do IGV – Instituto Gestão e Vida. Associate Editor for Public Affairs do Brazilian Journal of Psychiatry – BJP. Editor sênior da revista Debates em Psiquiatria. Review Editor da Frontiers. Acadêmico da Academia de Medicina de Brasília. Acadêmico Correspondente da Academia de Medicina de Minas Gerais.

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