Falar sobre saúde mental na infância e na adolescência é reconhecer que o cuidado humano não se restringe ao corpo. Há uma dimensão emocional e subjetiva que também precisa de atenção, porque os primeiros sinais de adoecimento podem surgir muito antes do que imaginamos, muitas vezes em gestos que parecem pequenos, mas que revelam um pedido de ajuda.
Segundo a Organização Mundial da Saúde, metade dos transtornos mentais surge antes dos 18 anos. Em 2021, aproximadamente 7% das crianças de 5 a 9 anos e 14% dos adolescentes de 10 a 19 anos já viviam com algum transtorno mental. Entre as crianças, o transtorno do desenvolvimento intelectual foi o mais prevalente, enquanto entre adolescentes os quadros mais comuns foram ansiedade e depressão. Esses dados mostram que o cuidado com a mente precisa ser tão precoce e constante quanto o acompanhamento do crescimento físico.
Assim como as consultas pediátricas acompanham peso, altura e vacinas, também deveria haver espaço para um verdadeiro check-up emocional. O acompanhamento preventivo com um médico psiquiatra especializado em infância pode identificar sinais precoces de sofrimento, orientar famílias e abrir caminhos de cuidado antes que situações mais graves se instalem.
O ambiente digital, cada vez mais presente no cotidiano das crianças e adolescentes, trouxe oportunidades, mas também riscos. Redes sociais, fóruns e jogos que promovem condutas perigosas expõem os jovens a influências que testam limites, criam comparações irreais e podem gerar sentimentos de inadequação. Não raramente, esses espaços funcionam como gatilhos para a automutilação e até para o desenvolvimento de ideias suicidas.
O suicídio já é a terceira principal causa de morte entre jovens no mundo. Estudos mostram que esse comportamento é multifatorial, resultado da interação entre determinantes sociais e ambientais, como desigualdade, exclusão educacional, falta de acesso a serviços de saúde, traumas e conflitos, além de predisposições genéticas. A automutilação, que vem se tornando mais frequente entre adolescentes, é muitas vezes uma forma de lidar com dores emocionais que eles não conseguem nomear. Trata-se de um sinal claro de que precisam de ajuda imediata e não de julgamento.
A série 13 Reasons Why trouxe esse tema à tona de maneira intensa, ao retratar a história de uma adolescente que, após episódios de violência emocional, bullying e solidão, chega ao extremo do suicídio. Na ocasião, tive a oportunidade de prestar assessoria técnica sobre os aspectos da psiquiatria da infância e adolescência, e essa experiência foi de grande relevância, pois permitiu contextualizar de forma científica e responsável os riscos que envolvem a vida dos jovens. A repercussão da série mostrou o quanto a sociedade precisa dialogar abertamente sobre dor, automutilação e risco de suicídio, não para romantizar, mas para compreender e agir preventivamente.
Além desses fatores, é importante lembrar que experiências comuns, mas significativas, podem abalar profundamente os mais jovens. A separação dos pais, o luto pela perda de um ente querido, mudanças de cidade ou escola e a rejeição em grupos de amizade podem ser vividas como verdadeiros abalos emocionais. Nessas fases da vida, a rede de apoio é essencial para que as dores não se transformem em traumas duradouros.
A escola tem papel decisivo nesse processo. Professores e coordenadores, por estarem próximos do cotidiano dos alunos, muitas vezes percebem transformações no comportamento antes mesmo da família. Quando a escola se une à família e ambas caminham junto aos profissionais de saúde, forma-se uma rede sólida capaz de acolher, orientar e prevenir.
A Organização Mundial da Saúde recomenda que a prevenção vá além de evitar o adoecimento, valorizando também a construção de uma saúde mental positiva. Isso inclui fortalecer vínculos familiares e sociais, criar ambientes seguros dentro e fora do mundo digital, estimular habilidades socioemocionais e promover atividades que favoreçam o bem-estar. Pequenos gestos, como a escuta verdadeira e o olhar atento, podem ser decisivos.
A prevenção começa cedo e se sustenta nos gestos simples. Uma conversa aberta, uma consulta preventiva, um ambiente de acolhimento e confiança podem transformar trajetórias. Assim como nas histórias em que o herói encontra aliados para atravessar desafios, nossos jovens também precisam de adultos atentos, disponíveis e preparados para caminhar ao lado deles. Cuidar da saúde mental das crianças e adolescentes é proteger o presente e preparar um futuro em que a vida seja sempre percebida como digna de ser vivida. Se precisar, peça ajuda.
*Antônio Geraldo da Silva é médico formado pela Faculdade de Medicina na Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES. É psiquiatra pelo convênio HSVP/SES – HUB/UnB. É doutor pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto – Portugal e possui Pós-Doutorado em Medicina Molecular pela Faculdade de Medicina da UFMG.
Entre 2018 e 2020, foi Presidente da Associação Psiquiátrica da América Latina – APAL. Atualmente é Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Diretor Clínico do IPAGE – Instituto de Psiquiatria Antônio Geraldo e Presidente do IGV – Instituto Gestão e Vida. Associate Editor for Public Affairs do Brazilian Journal of Psychiatry – BJP. Editor sênior da revista Debates em Psiquiatria. Review Editor da Frontiers. Acadêmico da Academia de Medicina de Brasília. Acadêmico Correspondente da Academia de Medicina de Minas Gerais.