Com dentinhos separados e jeito de patinho feio, Jane Birkin entrou na cena de um modo só dela: pernas finas, sotaque grosso, um jeito inebriante de conquistar. Foi embora nesse último dia 16, deixando conosco filmes românticos, músicas sensuais, um senso de estilo icônico, levando com ela o significado da palavra como o conhecíamos até agora. Ícone. Inesquecível, cultural, renovador.
Desde seus 18 aninhos, Jane Birkin era ‘the real deal’, a parada séria. “O tipo certo de ‘nada’” descreveu Guy Trebay, do New York Times. O tipo de esforço mínimo que ocupa todo esse espaço na memória. Musa do uma-vez-paramore Serge Gainsbourg, foi ao lado dele que protagonizou momentos e fotografias intrínsecos à tapeçaria popular dos anos 1970. Ela, com seus cabelos lisos e beleza natural, andava num gingado compassado diferente de outras musas da época. Mais moleca que Brigitte Bardot, menos boneca que Catherine Deneuve.
Desmontada e descalça, de jeans e camiseta branca, parecia ter inventado o je ne sais quoi da mulher francesa — logo ela, britânica da gema! Definiu muito do que se entende hoje por ‘french girl style’, sem deixar de lado aquele senso de humor afiado típico dos ingleses. Que mistura boa essa.
Cheia de vida e de alma, Jane não se deixava amarrar. Dos gemidos provocativos no sucesso Je T`aime… Moi Non Plus, cantados ao lado de Gainsbourg (seu parceiro no amor e na arte), aos escandalosos vestidinhos transparentes usados sem o desagrado de um sutiã, se tornou um símbolo da revolução sexual que definiu o final da década de 1960. – mas as bolsas estilo cesta sempre a transbordar de cacarecos. Livre, leve, solta.
É curioso que logo ela, tão espontânea em essência, tenha seu legado atrelado a um acessório do máximo luxo: Jane Birkin, diferente da bolsa que leva seu nome, é o princípio do essencial, do elementar, do substancial. Talvez por isso tenha se negado a tratar a peça com o máximo preciosismo, usando de suas Birkins como a maioria das mulheres usaria uma bolsa de mercado. Sempre surradas, abertas, jogadas em qualquer parte do chão. Cheias de adesivos e chaveiros, cheias de histórias para contar.
Tinha força criadora: aquela, que só se encontra em mãe e em artista. Falava sorrindo com boca e olhos, cantava com voz e mãos. No verão, deixava a pele bronzear com vestidinhos frescos e alpargatas. No inverno, protegia-se do vento de Paris com casacos de pelo, mas pernas à mostra.
Nas poucas vezes em que abraçava o glamour, o fazia com a naturalidade de uma dança. Foi musa de Paco Rabanne, quem diria! Logo ele, com suas peças cheias de metal, pompa e estrutura, à primeira vista tão espessas para uma graça tão fluida. Que nada! Quando Jane vestia Paco, tudo fazia sentido. O que quer que tocasse o corpo, tinha a bossa a seu favor.
Apadrinhou uma penca de causas humanitárias, rejeitou a vida de internet. Se fez discreta, como qualquer boa parisiense. E é quando mais carecemos de sua energia que ela se vai. Fica, Jane! Traga mais de seu espírito livre, sempre jovem e despreocupado. O mundo precisa! Tudo hoje em dia é algoritmo, é planejado, é planilhado. Música agora é feita para virar trend no TikTok, filme é gravado pra dar stream pra Netflix. Que dirá da moda então! Cada tentativa de inovação reduzida a uma hashtag, coloca ‘core’ no final e chama qualquer coisa de tendência. O estilo pessoal foi pro brejo, a galera tá chata e sem sal. Não coloca nada na bolsa pra não sujar forro, não sorri porque não fica bem na foto.
Mas se Jane deixou algo, deixou luz. Deixou obras que inspiram, palavras que motivam, deixou bondade e bom estilo. A garantia de que uma calça de linho bem cortada cabe em qualquer ocasião, de que nada perfeito tem graça: nem o cabelo, nem as unhas, nem a pronuncia do francês. Deixou um legado abundante e minimalista, preciso e essencial. De todo o ‘nada’, Jane deixou seu tipo certo de ‘nada’. E isso é tudo.