Dizer que seria a realização de um “sonho” pode não se encaixar como a forma mais adequada para definir a caminhada da jurista Daniela Teixeira até conquistar uma das principais cadeiras do Superior Tribunal de Justiça (STJ). A magistrada é a capa da edição de dezembro da revista GPS|Brasília (confira aqui a versão digital)
Apesar de intensa, a jornada não foi trilhada para ser a primeira brasiliense – e ainda mulher – a ocupar uma vaga nos tribunais superiores da capital onde nasceu e cresceu. “Foi um conjunto de fatores”, resume.
Com uma carreira de 27 anos como criminalista, vários destes também dedicados à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), onde disputou cinco eleições, ela decidiu encarar o desafio quando uma vaga se abriu e contou com a indicação da importante entidade de classe para o Quinto Constitucional. “Foram dois anos, quatro meses e vinte dias de intensa campanha”, conta. Mesmo assim, a ministra admite que a conquista dependeu de diversas variáveis, como o apoio político e as circunstâncias do momento.
Ao tomar posse, demonstrou sensibilidade com a cultura e tradição do Brasil ao customizar a toga com flores brancas de renda Renascença criadas por bordadeiras cearenses, o que ajudou a dar o tom de sua personalidade numa Corte reconhecida pela reverência à liturgia e ao protocolo. Tanto que solicitaram que a ornamentação fosse retirada da vestimenta oficial, mas sem que a nova ministra acatasse o pedido.
Entre a doçura nos gestos, nas palavras e a firmeza nas decisões, a magistrada de 52 anos ainda entende como “um choque” os seus primeiros momentos como integrante do tribunal, quando passou a compor uma das turmas criminais do STJ e se deparou de forma escancarada com uma “perversa realidade” – assim definida por ela – e até então desconhecida sobre a violência nos lares do Brasil.
“Eu desconhecia essa criminalidade, porque atuava, como advogada, em crimes econômicos. Mas aqui enfrento tráfico de drogas, estupros infantis e homicídios. É devastador”, relata.
Não à toa, o enfrentamento de fatos reais a levou a um colapso de saúde apenas três meses após assumir o cargo. “Tive um infarto sem colesterol alto ou pressão elevada. Foi o estresse em lidar com o Brasil cruel, onde organizações criminosas se infiltram em todos os espaços públicos”, continua.
Recuperada e disposta a persistir, Daniela mergulhou nos cerca de 25 mil processos que aguardavam deliberação, mas reforçou a atuação no combate à violência sexual contra crianças, especialmente, quando citou a predominância de casos contra meninas menores de 12 anos em incontáveis processos que tramitam na Corte Superior. “É uma afronta à dignidade do País. Como mãe, isso me fez rever toda a criação da minha filha”, comenta.
A ministra explicou que raríssimos são os casos de abusos ocorridos na rua. Geralmente, esses crimes ocorrem dentro de casa ou mesmo em ambientes domésticos e cometidos por pessoas da intimidade das famílias.
Apesar da revolta diante de tais circunstâncias, Daniela Teixeira, ainda assim, mantém a decisão de seguir uma linha de conduta humanizada e garantista. Ela explicou que assegurar os direitos processuais de todos os réus, mesmo daqueles casos mais controversos, é uma questão de fortalecimento da Justiça no País.
“Meu papel é garantir o devido processo legal, independentemente do crime. Se aceitamos desvios como tortura policial, o sistema perde sua legitimidade”, diz.
Raízes
Orgulhosa de suas raízes, a ministra enfatiza a importância de ser a primeira brasiliense a alcançar esse posto. “É emocionante ver meu nome em uma parede ladeada por obras de Athos Bulcão. Eu nasci aqui, cresci nas superquadras, estudei na UnB, e agora represento minha cidade no tribunal.”
Em seu gabinete, sua personalidade se manifesta de pronto. Bilhetes escritos de próprio punho grudados na porta de entrada. Com espaço afetivamente ambientado, as paredes são decoradas com dezenas de quadros com mensagens sobre mulheres, coragem, diversidade e inclusão. Bonecas em relicários, quadros florados, fotos memoriais.
Um dos destaques em sua sala de reunião, é a bandeira em tamanho real de seu time de coração: Flamengo, posicionada ao lado das bandeiras da Justiça e do Brasil. Às sextas-feiras, oferece misto-quente aos que lhe aguardam na sala de espera.
“Não é necessário utilizar pedidos de terceiros para uma audiência comigo. Eu recebo todos que solicitam um espaço na agenda. As conversas são breves e assertivas. Sim é sim. Não é não”, diz, lembrando de suas doze horas de trabalho diárias.
Recentemente, a magistrada lançou um livro com suas principais decisões durante o primeiro ano de atuação no STJ. Intitulado Com Razão a Defesa / Com Razão a Acusação, a obra reúne 25.636 processos julgados pela ministra, destacando sua perspectiva plural e o olhar feminino na Justiça penal brasileira.
A obra é dividida em duas partes, uma para decisões favoráveis à defesa e outra para decisões favoráveis à acusação, com prefácios do presidente da OAB, Beto Simonetti, e do procurador-geral da República, Paulo Gonet. “Conheço bem o sistema prisional brasileiro. Muitos juízes nunca visitaram um presídio, e isso é um erro”, diz.
Daniela Teixeira refletiu, ainda, sobre sua adaptação à magistratura. “No início, foi difícil conciliar minha expansividade com a rigidez do tribunal. Sou conhecida por abraçar, por ser chamada de Dani, e precisei ajustar minha postura”, afirma. “Acredito que, em algum momento, minha maneira de ser encontrará equilíbrio com a formalidade exacerbada do Judiciário”, completa.
- Confira a entrevista:
A senhora é a primeira magistrada nascida em Brasília a ocupar uma cadeira nos tribunais superiores. Como lida com essa responsabilidade?
Eu tento manter uma postura discreta. Julgar o processo é o meu trabalho, não fazer declarações públicas sobre ele. Evito falar sobre qualquer processo, até mesmo no meu Instagram. A minha função é ser uma servidora pública, cumprir meu papel com seriedade e respeito.
Quais foram os maiores desafios nesse primeiro ano?
A liturgia do cargo foi algo marcante. No começo, até minha postura parecia inadequada, porque o papel de uma ministra exige um comportamento impecável, 24 horas por dia. Até situações corriqueiras, como um prato errado no restaurante, tornam-se uma lição de serenidade. Não posso perder a compostura, porque isso repercute de forma desproporcional.
A senhora é conhecida pela sua postura serena, mas firme. Como essas características impactam suas decisões?
É sempre importante lembrar que, por mais que eu tenha milhares de processos, cada um representa uma vida. A lição principal que sigo é que nem sempre a acusação está certa, nem sempre a defesa está certa. Cada caso deve ser analisado com atenção e imparcialidade.
A senhora mencionou um caso curioso envolvendo uma criança. O que aconteceu?
Estava em um salão de beleza quando vi uma criança sozinha na rua, em perigo, após um castigo dado pela mãe, que se embelezava no estabelecimento. Apesar da vontade de agir como cidadã, tive que lembrar do peso institucional do meu cargo. Resolvi a situação com diálogo, mas foi um exemplo de como ser magistrada requer cautela em todas as ações. Meu papel vai além do pessoal; represento o Judiciário.
A senhora percebe uma diferença nas decisões mais fáceis e nas mais difíceis?
As mais fáceis são aquelas que seguem a jurisprudência consolidada. O desafio está quando a decisão foge dessa linha, e você sente que algo não está certo. Aí, você precisa buscar argumentos, consultar seus colegas, e dar sua interpretação. Não tenho peso na consciência por aplicar penas, pois sei que estou fazendo o que é necessário.
Sobre o sistema prisional, a senhora tem um grande senso de realidade por já ter visitado várias unidades carcerárias do País. Como isso influencia suas decisões?
Eu já fiz inspeções em diversos presídios e conheço bem o “A verdade é que estamos formando um exército de criminosos ao manter pessoas desnecessariamente presas” Evito falar sobre qualquer processo, até mesmo no meu Instagram. A minha função é ser uma servidora pública, cumprir meu papel com seriedade e respeito.
A senhora acredita que é possível uma mudança no sistema prisional?
Sim, acredito. O ministro Barroso tem uma visão moderna e humanitária, que pode transformar o sistema. É preciso entender que nem todos que cometem crimes precisam ser presos. E, quando colocamos alguém na penitenciária, é importante garantir que ele não se torne parte do crime organizado. Porque, a verdade é que estamos formando um exército de criminosos ao manter pessoas desnecessariamente presas.
O que a motivou a escrever o livro sobre suas decisões judiciais no primeiro ano como magistrada?
O livro reflete minha experiência no tribunal, com decisões que marcaram minha trajetória. Não sou eu quem escolho as decisões que aparecem nele, mas sim meus assessores e familiares, que discutem comigo e ajudam a organizar os comentários. O que busco é que as decisões sejam analisadas de forma justa, sem influências externas.
Como concilia sua vida pessoal com sua intensa agenda de trabalho?
Viajo muito com minha família. É uma forma de equilíbrio, de desconectar do trabalho. Mesmo com a agenda cheia, sempre busco momentos para estar com meus filhos e meu marido. Isso me ajuda a manter a mente fresca e focada no que realmente importa.
Como é lidar com a pressão e a segurança no cargo?
Brasília tem uma cultura de respeito ao poder constituído. Não há histórico de ameaças contra magistrados como em outros países. Contudo, a segurança é necessária, pois lidamos com decisões que impactam vidas. Tento manter a serenidade e não carregar os casos julgados comigo. Adotei o mantra de esquecer tanto vitórias quanto derrotas no mesmo dia.
Como a senhora se vê no futuro?
Não tenho apego ao cargo. Nem me vejo como ministra. Eu sou uma servidora pública. Cumpri um papel importante, mas acredito que a Justiça é uma obra coletiva. O próximo grande desafio será enfrentar a violência contra crianças, como fizemos com as mulheres há duas décadas.