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A Carta Magna: os 35 anos da Constituição Federal

Um momento que simbolizou a materialização da vontade coletiva, como se passada uma régua sobre as décadas da ditadura
Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

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O próprio tempo parecia saber que aquele 5 de outubro de 1988 traria mudanças. Após quatro meses da seca tão característica do Cerrado, Brasília amanheceu chuvosa, modorrenta. Todos os cantos do Congresso Nacional se agitavam com preparativos. Pessoas corriam de lá para cá levando documentos, policiais armavam um forte esquema de segurança e as emissoras de TV começavam a posicionar suas equipes. Às 15h30, a Assembleia Nacional Constituinte iniciou a sessão solene de promulgação da nova Constituição Federal. Após 35 anos, não é difícil olhar para trás e constatar que o Brasil jamais foi o mesmo.

As autoridades chegaram ao Congresso com pompa naquele dia. O então presidente da República, José Sarney, o da Assembleia, deputado Ulysses Guimarães, e o do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Rafael Mayer, encontraram-se na rampa do palácio (Rampa do palácio do Congresso) para a revista de tropas e uma salva de tiros de canhão do Exército.

Florian Madruga (Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado)

Longe dos holofotes, uma figura igualmente importante para aquele momento histórico acompanhava tudo e aguardava o encerramento dos trabalhos para poder, enfim, relaxar. Então chefe do Serviço de Revisão da Gráfica do Senado, Florian Augusto Coutinho Madruga havia trabalhado no dia anterior inteiro e uma parte da madrugada para garantir que a Carta Magna chegasse a todos.

Ele supervisionou a impressão dos primeiros vinte mil exemplares do texto legal, impressos em um esquema especial nos dias anteriores, que seriam distribuídos em dezenas de caminhões dos Correios para todos os estados do Brasil. Mais do que isso, junto aos seus companheiros, teve de arrancar, à mão, uma página de todas as cópias do livro, por conta de um capricho de Ulysses Guimarães.

“O presidente da Assembleia fez um texto de apresentação da Constituição, assinado por ele, e pediu para incluir no livro final. Mas quando algumas autoridades tomaram conhecimento disso, houve uma forte contestação sobre essa introdução particular, porque se tratava de um documento oficial. Então, tivemos de passar a noite toda retirando a folha com o texto do Ulysses de cada um dos milhares de exemplares já impressos. Foi um por um”, recorda o servidor aposentado, atualmente com 75 anos.

Foto: Arquivo/Agência Senado

Se a nação prendia a respiração aguardando pelo momento histórico, o verdadeiro trabalho, para Florian, começara semanas, meses antes, enquanto a Assembleia Constituinte ainda aprovava as leis que fariam parte do texto final. Foram 19 meses de deliberação, com 245 artigos aprovados e 1,6 mil dispositivos.

“Era um tempo sem computador, tudo no papel, e o que a Secretaria-Geral da Mesa da Câmara, que controlava a Constituinte, enviava para a Gráfica do Senado precisava ser composto no linotipo, revisado, impresso e entregue aos deputados antes das 7h da manhã. Todos os pareceres, relatórios, etc. eram remetidos a nós. E tínhamos uma equipe destinada exclusivamente para ficar à disposição da Constituinte. Trabalhamos quase dois anos frenéticos nesse esquema, de segunda a segunda, com convocações sábado e domingo e as equipes se revezando em três turnos ao dia”, relembra.

 

Os desdobramentos

A Assembleia Nacional Constituinte foi convocada por Sarney em julho de 1985 com intuito de organizar o Poder Legislativo para erguer a Carta Magna do Brasil redemocratizado. Ela foi ativada em janeiro de 1987 e teve seu propósito cumprido justamente em 5 de outubro de 1988.

Foi nesta data que o Brasil renasceu. A nova Constituição Federal foi promulgada com uma confluência de sentimentos diferentes de seus gestores. As emoções dos parlamentares foram representadas no incisivo discurso de Ulysses Guimarães, cujo rosto e voz se tornaram símbolo do período de redemocratização. “Traidor da Constituição é traidor da pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgaram a constituição. Trancaram as portas do Parlamento. Garrotearam a liberdade. Mandaram os patriotas para a cadeia, exílio e cemitério”, discursou, raivosamente, o parlamentar, em alusão ao regime militar brasileiro.

Foto: Arquivo/Agência Senado

O professor de História do Direito, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), Cristiano Paixão, afirma que a ideia dos constituintes era justamente instigar o clima de ruptura, recomeço. A nova Constituição Federal era a materialização dessa vontade, como se o País tivesse passado a régua sobre as décadas da ditadura. “Desde o final dos anos 1960, opositores dos militares associavam o fim do regime à convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte e acabou sendo assim mesmo. O Chile, por exemplo, não conseguiu fazer isso após o período de Pinochet. A Argentina apenas revisou a Constituição deles ao fim da ditadura por lá. Então, ao criarmos a nossa nova Carta Magna, pudemos marcar a era daquela nova democracia”, pontua.

Ele contextualiza que, durante a ditadura, os governantes fizeram diversas alterações significativas na legislação, o que quase configurava novas constituições para o País a cada mudança. O texto legal de 1988 era a tentativa de dar estabilidade a um país vindo de períodos de diversas crises econômicas e políticas e em ebulição nas ruas pela realização de eleições diretas. A população conseguiu o que queria, mas evidentemente as mudanças não foram imediatas.

Segundo o professor, aconteceram movimentos distintos após 1988. Na década de 1990 até os anos 2000, a Carta Magna representou a estabilidade democrática para os governos tomarem decisões. A primeira crise aconteceu logo com o primeiro presidente eleito após a ditadura, Fernando Collor de Mello, que renunciou ao cargo em meio a um processo de impeachment aberto contra ele. As coisas se regularizaram no governo subsequente, de Itamar Franco, e houve relativa estabilidade logo após.

“Nos governos FHC, houve foco na transformação da intervenção direta do Estado em atividade regulatória, com a criação de agências, e a forma constitucional serviu para isso por meio de emendas constitucionais que trouxeram essa expectativa. A ênfase nas transformações foram atendidas pela Constituição. No governo Lula, houve o mote da valorização do salário-mínimo e novamente a Constituição possibilitou essa criação de novas políticas públicas sob a égide do mesmo texto. Então, de certa forma, a Carta Magna se mostrou plástica para suportar essas variações”, explica o professor.

Foto: Arquivo/Agência Senado

Curiosidades

  • A Constituição de 1988 tem cinco exemplares originais, assinados por Ulysses Guimarães no dia da promulgação, em 5 de outubro. Os livros estão preservados por diferentes museus públicos, como o do STF e o do Senado Federal, e têm réplicas exibidas Brasil afora.
  • Nas invasões de 8 de janeiro de 2023, uma fake news circulou pelas redes sociais, sugerindo que vândalos teriam roubado uma cópia original da Carta Magna durante o ataque ao STF. A própria Corte esclareceu, depois, que se tratava apenas de mais uma réplica.
  • A chuva de 5 de outubro atrapalhou as celebrações preparadas para comemorar a promulgação e desestimulou a participação popular nos eventos do dia.
  • O culto ecumênico concelebrado pelo cardeal arcebispo de Brasília na época, dom José Freire Falcão, e pelo pastor Geziel Gomes, da Assembléia de Deus, marcado para as 9h da manhã, ocorreu no Salão Negro do Congresso e não no gramado da Esplanada dos Ministérios, como estava previsto.
  • A Constituição de 1988 é a sétima da história do Brasil. As anteriores foram de 1824, 1891, 1934, 1946 e de 1967.
  • Quatro das Constituições anteriores foram promulgadas por assembleias constituintes, duas foram impostas por D. Pedro I e Getúlio Vargas e outra foi aprovada pelo Congresso por exigência da ditadura.
  • O texto de 88 também recebeu a alcunha de Constituição Cidadã tanto por ter recebido a contribuição de diversas entidades da sociedade civil quanto por ter estabelecido direitos. Dentre eles, aumento da licença-maternidade, licença-paternidade de cinco dias e até a criação do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
  • Ulysses Guimarães foi um dos rostos marcantes da redemocratização tanto por sua atuação para a aprovação da Carta Magna quanto por seu histórico durante o regime militar.
  • Antes mesmo de encabeçar a criação da nova Constituição na assembleia, ele já havia desafiado a ditadura ao lançar uma autocandidatura à presidência em 1973, como forma de protesto.
  • Ulysses foi dado como falecido em 1992, aos 76 anos, após o helicóptero em que ele estava ao lado da esposa e outras três pessoas sofrer um acidente em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro. Seu corpo jamais foi encontrado.
  • O nome de Ulysses foi incluído no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria em 2019, após a promulgação da Lei 13.815/2019.

*Matéria escrita por Eric Zambon para a Revista GPS 38