Foi como um coice que recebi, em Paris, no mês de agosto do ano passado, a notícia da morte de Aderbal Freire Filho. Primeiro o susto, depois o vazio… o vazio que é tudo que resta quando se perde algo inestimável. Insubstituível!
A primeira vez que Aderbal ‘mexeu’ com a minha cabeça eu tinha apenas 20 anos. No Teatro Ipanema uma professora genial, interpretada por Marilia Pêra, desvelou-me a batuta mágica desse contador de historias e artesão de sonhos. E ele tinha “apenas” pouco mais de trinta anos!!
Depois vieram montagens inesquecíveis, das quais não consigo mais precisar a cronologia, mas que me tocaram para sempre como ‘A Mulher Carioca’ e ‘Turandot’. Lembro-me que depois de ver ‘Sonata de Outono’, de Bergman, com Andrea Beltrão, Marieta Severo e Isio Ghelman, no pequenino Teatro Poeira, vaguei sem destino noite adentro pelas ruas de Botafogo, como que sob o efeito de uma overdose. ‘Lampião’, ‘Xambudo’, ‘Rei Diabo do Brasil’, ‘No verão’, ‘Isabel’, ‘Depois do Filme’, foram outros encontros inesquecíveis com a batuta do mestre… Ganhador do Molière, do Golfinho de Ouro, do Prêmio Shell inúmeras vezes.
Depois, devido aos compromissos no exterior e o rareamento de visitas ao Brasil, deixei de acompanhar o trabalho de Aderbal. Mas a vida nos reserva surpresas venturosas.
Em 2014, em minha casa nas profundezas da Floresta de Fontainebleau, na França, recebo um telefonema:
– Antonio, tudo bem? Aqui é o Aderbal… Eu e Marieta estamos em Paris. Podemos ir aí visitar o teu atelier?
Claro que sim, respondo, na expectativa de uma conversa deliciosa com dois artistas tão sensíveis e talentosos. Mas Aderbal havia me preparado uma surpresa.
Dois dias depois ele desembarca no meu atelier no meio do mato com uma ‘trupe’ completa: dois carros, dois câmeras “men”, um iluminador, um técnico de som e a sua linda Marieta a tiracolo.
– Antonio, será que a gente pode fazer uma entrevistazinha?
Por essas coincidências que somente o passar do tempo reveste de significados, doze anos antes algo muito parecido já havia acontecido comigo. Quando eu ainda passava totalmente ‘desapercebido’ aos críticos de arte dos jornalões brasileiros, um dia vi o grande e saudoso diretor Sérgio Brito entrar em minha casa na Avenida Niemeyer para fazer comigo, o que fora, até então, a melhor entrevista de minha vida.
E não é que, doze anos depois, Aderbal, então o mais importante diretor de teatro vivo no país, também desembarca “chez moi” com um microfone na mão? E foram estas duas entrevistas, a dois dos maiores nomes do teatro brasileiro, as melhores que dei em toda a minha vida!
Aderbal tinha o talento de Midas: tudo que tocava virava uma ode à vida, uma sinfonia inebriante aos sentidos. Era desses artistas que, indiferente à liturgia de seu talento único, entregava-se à vida com embriaguez, garimpeiro de emoções fortes e sentimentos profundos. Seu carisma, empatia e emotividade contagiavam a todos desde o primeiro lampejo de sua presença.
Que sorte teve quem pôde bater um papo com esse cara! Ele, assim como Sérgio Brito, era um verdadeiro uomo universale no sentido mais amplo do termo. Sabiam de tudo, conheciam tudo, sem abdicar da paixão da partilha, da troca e da escuta. Talvez por isso vieram ambos ao encontro desse pintor exilado de todos os caprichos mundanos. Eles tinham ouvidos para as estrelas, mas para os pequeninos também.
A deliciosa entrevista que Aderbal fez comigo, prolongada em duas edições diferentes no seu programa Arte do Artista na TVE do Rio de Janeiro, está disponível no youtube àqueles que tiverem a curiosidade. Mas eu quero aqui é revelar os bastidores dela: a doçura de Adebal, sua lucidez, o brilho fulgurante do seu olhar durante os diálogos, a grandeza de sua paciência com esse pintor falador e o enorme carinho com sua amada Marieta! Sem me dar conta, o entrevistado era eu mas o regente era ele, diretor sensível e que sabia tirar de seus personagens o melhor deles mesmos.
Com a partida de Aderbal a dramaturgia brasileira ficou muito mais pobre e eu perdi um amigo sofisticadíssimo e um papo indescritível. Depois do seu acidente vascular, eu ousei sonhar com sua recuperação. Ainda que fosse apenas pra dizer “tudo bem, amigo? Quando é que a gente toma uma garrafa de bordeaux outra vez?” Mas fui atropelado pela pata pesada da realidade.
Descanse em paz, menino que jamais envelheceu, poeta de todas as palhetas, feiticeiro e pajé, alquimista, visionário, navegador de horizontes… tu não serás jamais esquecido, admirável Aderbal.
*Antonio Veronese é um pintor ítalo-brasileiro que se divide entre o Brasil e a França. É autor de obras como ‘Tensão no Campo’ ( Congresso Nacional); ‘Famine’ (FAO, Roma) e ‘Save the Children’ (símbolo dos 50 anos das Nações Unidas). Com mais de 70 exposições individuais em todo o mundo, Veronese é considerado pela crítica francesa como “um dos dez pintores vivos que já deixaram seus rastros na história da Arte”.