No final da tarde do aniversário de 88 anos de Alaíde Costa, uma sexta-feira chuvosa de dezembro, o Estadão pergunta como a cantora e compositora se sente naquela data especial. “Esse dia vai começar só daqui a pouco”, diz uma das maiores vozes da música brasileira.
A carioca se referia à apresentação noturna Turmalina Negra, na casa de shows Bona, zona oeste, onde cantou com Claudete Soares, Zé Renato e Ayrton Montarroyos.
É uma vida que se realiza nos palcos em quase sete décadas de carreira. Principalmente agora, quando Alaíde Costa alcança o reconhecimento que sempre buscou. “Estou feliz. Chegar a essa idade me apresentando, tendo o reconhecimento que não tive antes, é muito gratificante.”
Seu primeiro álbum foi lançado dois anos antes de Chega de Saudade (1958), música que marca o início da bossa nova, mas só recentemente ela passou a ser reconhecida entre os grandes nomes do gênero – assim como Johnny Alf, precursor do estilo e também negro. Mas vamos deixar o racismo para mais tarde.
Nos últimos anos, parcerias revigoraram a carreira histórica. Pode parecer um paradoxo, mas ela conta que está sendo descoberta depois dos 80 anos. Em 2022, lançou O Que Meus Calos Dizem sobre Mim, produzido por Emicida, Pupillo (Nação Zumbi) e Marcus Preto, álbum eleito o melhor lançamento fonográfico de MPB no 30º Prêmio da Música Brasileira. A cantora foi aplaudida de pé no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
Em maio deste ano, Alaíde se apresentou em Portugal com a Orquestra de Jazz do Algarve e no Carnegie Hall, em Nova York, em outubro, no show em comemoração aos 60 anos da bossa nova. Novamente foi ovacionada.
Rumo
Alaíde é uma das poucas artistas vivas que passou por todos os formatos de mídia, desde o 78 RPM, LP, K7, CD e, agora, o streaming. Ela nunca parou de cantar e gravou mais de 20 discos. Teve grandes parceiros musicais, como o próprio Johnny Alf, Vinicius de Moraes, Tom Jobim, João Gilberto, Milton Nascimento, Oscar Castro Neves, entre outros.
Alaíde credita exatamente aos jovens, principalmente a Emicida, o novo rumo de sua carreira. “É o meu melhor momento. Os jovens me descobriram depois dos 80 anos. Não sei o motivo disso. Essa resposta eu não tenho”, diz a cantora.
Nos anos 1950, quando já era profissional, ela foi convidada por João Gilberto à casa do pianista Bené Nunes, onde ocorreram algumas reuniões com os artistas que ajudaram a fundar a bossa nova, mas o nome dela nunca foi reconhecido por eles. “Eu comecei a cantar a música deles. Fui bem aceita. Mas havia um pouquinho de racismo. Um pouquinho, não. Bastante. Sem que eu percebesse.”
Não há mágoa. A cantora acredita que um dos segredos de sua vitalidade é exatamente esse: deixar pra lá, não se estressar. “Quando a bossa nova se estabeleceu, eles se esqueceram de mim. Para mim, está tudo bem. Eu estou aqui. Não fiquei com mágoa. Isso não faz bem para ninguém.”
Na conversa de meia hora, antes do ensaio final para o show histórico, fica claro que Alaíde não se importa em apresentar respostas fechadas. Mas ela tem algumas certezas. Uma delas foi a coerência artística, o que não foi fácil. “Paguei caro por isso, porque não ganhei dinheiro, que é muito importante. Ganhei para sobreviver, não fiquei rica. Isso nasceu comigo. Não querer outra coisa além do que eu quero.”
A quase nonagenária fala de temas espinhentos com uma voz doce, que quase suaviza as dores. Ela está certa de que os aplausos demoraram a vir por causa do racismo velado. Nos períodos sem gravar, ela se apresentou em shows, bares e boates. Só parou de cantar durante o período para uma cirurgia no ouvido.
“No começo, eu não percebia isso (racismo). As gravadoras e produtores diziam que eu tinha de cantar uma coisa mais animada, um sambinha. Para essas pessoas, o negro só tem de tocar samba ou coisinhas mais animadas. Mas não era isso que eu queria para mim”, diz.
Atualmente, Alaíde Costa grava o segundo disco de uma trilogia e já lançou dois singles do novo trabalho: Moço (Marisa Monte e Carlinhos Brown) e Ata-me (Junio Barreto). Está em turnê por todo o Brasil com três shows, um deles ao lado das amigas Eliana Pittman e Zezé Motta, cantando um repertório apenas de compositores negros.
Hoje, a vida de Alaíde é simples, sem carne vermelha e com muita água na casa onde vive com o caçula (ao todo, são três filhos, quatro netos, dois bisnetos). Ela gosta de ouvir música popular brasileira e o grande mestre do tango, Astor Piazzolla, uma de suas paixões. Outro hábito é a caminhada, que ela manteve mesmo durante o isolamento social imposto pela pandemia do coronavírus “Eu sempre arrumava uma desculpa para sair, nem que fosse para ir ao mercado.”
*As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.