Poucos sabem, mesmo os brasilienses mais apaixonados, mas a capital federal chegou a ganhar uma quadra com nomes dos tradicionais bairros do Rio de Janeiro. A ideia ocorreu em 1960, quando a construtora Graça Couto decidiu batizar os edifícios que seriam erguidos na SQS 113 em homenagem às mais conhecidas localidades da Cidade Maravilhosa, até então sede do Executivo nacional.
E houve um motivo para a empreitada: naquela época, o governo tentava convencer os funcionários públicos a deixar a então capital para morar no “sonho de Dom Bosco“, uma investida do então presidente Juscelino Kubistchek, fundador de Brasília. Até mesmo a proposta de dobrar o salário foi oferecida a quem, realmente, topasse o desafio.
Paralelamente, na esteira comercial, a empreiteira Graça Couto decidiu nomear os edifícios residenciais da 113 Sul como Glória, Catete, Flamengo, Botafogo, Leme, Copacabana, Ipanema, Leblon, Gávea, Tijuca e Laranjeiras, os mais tradicionais da época. A reunião de todos eles daria ao endereço residencial brasiliense o nome de Superquadra Rio de Janeiro.
A estratégia de marketing, e que chegou a virar publicidade, foi um sucesso de vendas. Contudo, a ideia comercial contrariou o plano original de Lúcio Costa, que mantinha a lógica de identificar os endereços do Plano Piloto apenas com números e letras.
Mesmo assim, embora tenham sido obrigados a se enquadrar na orientação do plano urbanístico, os blocos residenciais permaneceram, mesmo que por uma pequena temporada, ainda conhecidos pelos nomes dos endereços cariocas.
Mudança de planos
Com o passar do tempo, a ideia inicial foi perdendo a força e os moradores acabaram se rendendo às pressões dos defensores do plano original. Os primeiros a serem renomeados foram os edifícios Leblon e Ipanema, que passaram a se chamar Marquês de Tamandaré e Barão do Amazonas, respectivamente. As novas homenagens ocorreram porque as duas unidades foram adquiridas exclusivamente para abrigar oficiais de alta patente da Marinha do Brasil.
Da mesma forma, os blocos Copacabana, Flamengo, Catete e Glória, todos da Zona Sul do Rio de Janeiro, perderam suas alcunhas originais e passaram a ser conhecidos apenas pelas letras determinadas pelo planejamento original da superquadra.
Segundo o presidente da Companhia Urbanizadora de Brasília (Novacap), Fernando Leite, a tentativa inicial não teve êxito por quebrar a ideia original de Brasília. “Existia essa intenção, entretanto o projeto de Lúcio Costa trouxe um jeito diferente de viver. Ele costumava dizer que não tinha intenção de repetir o que ocorria em outras cidades, ele queria criar um novo jeito para se viver. Então, a própria concepção das superquadras, que são únicas, deveriam obedecer as orientações daquele momento“, disse.
Responsável pela construção da capital, a Novacap tinha como empregados os dois principais nomes para tirar Brasília do papel: Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. “Realmente, aqui temos muitas histórias e temos a intenção de fazer um museu da Novacap para agrupar todas essas informações sobre a nossa cidade“, emendou.
Atualmente, quem visita a quadra consegue ainda testemunhar o nome lapidado na fachada do bloco Leme, por exemplo. Por ter sido construído apenas em 1978, o edifício que seria Botafogo já foi inaugurado com o nome de Varandas Sul, um dos primeiros do Plano Piloto a ter cobertura e varandas, benefícios até então impedidos pelo plano de Lúcio Costa.
Pesquisa
Originalmente, poucas publicações se referiam, na internet, ao projeto iniciado pela construtora responsável pelo surgimento da SQS 113. Além do jornalista Irineu Tamanini, que ajudou a revelar o tema, houve outra menção à curiosidade em texto feito pela página Histórias de Brasília.
O livro A invenção da Superquadra, escrito por Matheus Gorovitz e Marcílio Mendes Ferreira, confirma a história curiosa sobre a superquadra da Asa Sul. Os autores são referências importantes sobre a preservação patrimonial de Brasília.
A publicação, recomendada pelo arquiteto Daniel Mangabeira, ex-presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU-DF), indica que cada unidade da SQS 113, a depender do bloco e bairro carioca, teria uma formatação própria, seja pelo tamanho ou pela quantidade de dormitórios.
“A construtora Graça Couto, do Rio de Janeiro, construiu na SQS 113 três blocos de apartamentos projetados pelo arquiteto Jaci Ferreira Hargreaves (1931-2008), com início em maio de 1961 e conclusão em dezembro de 1962″, registra a obra.
“Esta foi a primeira iniciativa privada em Brasília com projetos de qualidade arquitetônica. Posteriormente, a construtora Guarantã construiu os blocos E e F, da SQS 309, também com qualidade arquitetônica indiscutível. Seria bom se as atuais construtoras seguissem esses exemplos”, emendaram os autores sobre a 113 Sul.
Plantas
A quadra abriga apartamentos grandes, com até 206 m² e até quatro quartos, a depender da planta. O endereço também ficou conhecido por ter sido cenário, no ano de 2009, de um dos crimes mais noticiados no país: o triplo assassinato do advogado José Guilherme Villela, a mulher dele, também advogada Maria Villela, e a funcionária de confiança do casal, Francisca Nascimento Silva.
Antes dessa tragédia, contudo, a localidade colecionava boas memórias sobre o ambiente familiar, amistoso e tranquilo, atrativos para novos moradores.
Exemplo disso é o depoimento da ex-governadora Maria de Lourdes Abadia, que foi uma das moradoras mais ilustres da quadra. Ela lembra de bons momentos vividos na quadra, entre eles quando recebeu a confirmação, em 1998, de que estaria no segundo mandato na Câmara dos Deputados, quatro anos antes de ser eleita vice-governadora de Joaquim Roriz.
“Nos mudamos para a 113 Sul numa época muito boa, quando fui eleita deputada federal, em 1998. Quando houve a divulgação do resultado oficial do TSE, apoiadores da minha campanha adentraram a quadra e soltaram fogos numa festa muito bonita pela vitória do nosso projeto”, disse à reportagem.
Abadia conta que não era difícil encontrar nomes conhecidos na cidade, como jornalistas, políticos e até então titulares da Esplanada dos Ministérios, quando decidia passear pelos pilotis da quadra da Asa Sul.
“Lembro que vários nomes conhecidos moravam lá, como jornalistas famosos da TV e até o ex-ministro da Cultura Gilberto Gil, que frequentava muito a comercial da 113 Sul. A banca de revistas de lá também era um ponto de encontro especial para todos os moradores, já que na época não havia a internet, como a de hoje, e havia uma variedade de produtos que atraiam crianças, moradores e até a vizinhança de outras quadras“, emendou.
Selo de reconhecimento
Em dezembro de 2021, o Bloco H da SQS 113 recebeu o selo “CAU-DF – Arquitetura de Brasília“. A homenagem, conferida ao projeto do arquiteto Arnaldo Mascarenhas Braga, foi criada pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Distrito Federal para reconhecer o valor histórico das edificações não monumentais de Brasília e de seus autores, “bem como divulgar as boas práticas de conservação e manutenção predial que preservaram a linguagem arquitetônica do movimento moderno“, conforme explica a entidade.
Segundo Ilka Teodoro, ex-administradora do Plano Piloto, o momento é necessário para educar as novas gerações sobre a importância do respeito ao tombamento cultural e histórico da capital federal.
“A Brasília do futuro depende muito da Brasília do presente. O futuro está sendo traçado hoje e, por isso, debater preservação e conservação do nosso patrimônio é tão importante. Eles são instrumentos necessários para que a gente possa conservar as nossas características originais, as características que moldaram o conjunto urbanístico de Brasília, especialmente as quatro escalas que estão presentes nesse projeto de cidade que foi o Plano Piloto”, disse.
*A reportagem integra uma série especial do GPS em homenagem aos 63 anos de Brasília. A publicação do conteúdo, na visão editorial do portal, tem o objetivo de difundir e, da mesma forma, eternizar as histórias que marcaram a construção da nossa capital federal.