Compartilhar fragmentos da vida nas redes sociais tornou-se um hábito de nossa época, quase um diário público em tempo real. Em muitos lares, perfis de crianças são criados por mães e pais com a intenção de guardar memórias e aproximar familiares distantes. À primeira vista, a prática parece inofensiva, porém convém lembrar que cada publicação deixa um rastro permanente, que pode ser copiado, arquivado e reinterpretado fora de contexto. A infância, que é breve e delicada, não deve ser convertida em vitrine constante, muito menos em palco de expectativas adultas.
A denúncia recente do influenciador Felca acerca da exploração e sexualização infantil nas redes reabriu uma discussão que é urgente e inadiável. Cresce o número de crianças e adolescentes expostos a conteúdos, linguagens e enquadramentos que não correspondem à sua idade, e que frequentemente são recompensados por curtidas e comentários. O fenômeno da adultização ou sexualização precoce, ao propor roupas, poses e falas de adulto, desloca a criança de seu eixo de desenvolvimento e a prende em uma lógica de performance e validação externa, terreno fértil para confusões emocionais e riscos concretos à sua segurança e a sua saúde física e mental.
As plataformas funcionam por algoritmos orientados à atenção, premiando o que engaja, não o que educa. Do ponto de vista do desenvolvimento, crianças e adolescentes não dispõem do mesmo discernimento que adultos, a maturação das funções executivas e do julgamento moral ocorre de forma gradual ao longo da adolescência, com consolidação apenas na vida adulta. Em fase de formação da identidade, esses sujeitos são especialmente sensíveis a recompensas rápidas, comparações constantes e pressões de pertencimento, o que torna a exposição precoce um vetor de vulnerabilidade.
A consequência pode ser uma relação distorcida consigo mesmo e com o próprio corpo. A criança aprende a se avaliar pelo espelho do outro, sente-se compelida a agradar uma platéia invisível e mutável, e passa a medir valor por métricas voláteis. Daí emergem frustração, tristeza, ansiedade, queda de autoestima, perturbações do sono e da atenção, além do risco aumentado para transtornos como depressão, transtornos de ansiedade e dificuldades alimentares. Não se trata de demonizar a tecnologia, mas de estabelecer fronteiras protetoras, proporcionais à etapa de desenvolvimento.
O desenvolvimento infantil pede respeito ao seu ritmo. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, a infância compreende o período do nascimento até os 12 anos de idade. Esta é a fase mais estruturante do desenvolvimento, quando se consolidam vínculos, linguagem, imaginação, autorregulação emocional e sentido de segurança. A adolescência, que se estende até a maioridade, é a ponte que integra essas aquisições ao mundo social mais amplo. Adultizar é pular etapas, e pular etapas cobra preço. É como calçar sapatos grandes demais, a criança tropeça não por incapacidade, mas porque o tamanho não corresponde ao seu tempo. Cosiderando um indivíduo que vive até os 90 anos: Infância e adolescência 0–18: 18 anos, 20,0%, Idade adulta 18–60: 42 anos, 46,7% Velhice 60–90: 30 anos, 33,3%. Absurdo “encurtar” os apenas 20% da melhor fase, acelerando para as já imensas.
O lúdico é a gramática própria da infância. No faz de conta a criança organiza afetos, experimenta papéis, exercita empatia e flexibilidade cognitiva, fortalece linguagem e criatividade. As historinhas, longe de serem mero entretenimento, oferecem mapas simbólicos para entender o medo, a coragem, a perda e a esperança. Um conto infantil bem contado, com tempo, calma e colo, protege mais do que centenas de conselhos. Quando a infância é substituída por roteiros adultos, perde-se um laboratório essencial de saúde global, que sustenta a vida psíquica futura.
Às famílias cabe uma mediação ativa e afetuosa do mundo digital. Isso inclui supervisionar conteúdos, configurar privacidades, conversar sobre riscos e consentimento, orientar sobre quem pode ver e comentar, estimular atividades fora das telas, valorizar qualidades que não se reduzem à aparência, como gentileza, curiosidade e perseverança, e, sobretudo, oferecer presença. O elogio ao esforço e aos gestos de cuidado, e não apenas à estética, ensina critérios internos mais estáveis do que qualquer contagem de likes.
A corresponsabilidade é comunitária. Escolas, serviços de saúde, plataformas e anunciantes precisam cooperar com políticas claras de proteção, mecanismos de denúncia efetivos, verificação etária robusta e desenho de ambientes que não convertam a infância em mercadoria. A sociedade adulta deve cultivar um imaginário que reencante a infância com brincadeiras, livros, música e convívio, lembrando que o tempo de ser criança não é um ensaio para a vida, é parte constitutiva da vida.
Um exercício simples ajuda a medir o risco. Pergunte-se se permitiria em praça pública o mesmo que se publica nas redes. A internet é uma praça ampliada, sem fronteiras, com arquivo e reprodução instantâneos. Aquilo que não se autorizaria sob o olhar da comunidade, por que seria aceitável diante de milhões de estranhos, agora ou no futuro, quando aquela criança for adulta e quiser outra relação com sua própria história.
O arcabouço legal de proteção à infância e à adolescência existe, é preciso torná-lo efetivo, regulamentado em detalhes e aplicado com responsabilidade por todos os atores, famílias, escolas, plataformas, empresas e Estado. Que se aprimore a regulação, que se eduque para o uso responsável e que se responsabilize quem viola direitos. E que se repita, com toda a ênfase necessária, a infância é o período mais curto da vida, termina por volta dos 12 anos, a adolescência vai até a maioridade, e todo o restante, a vida adulta e a velhice, é o trecho mais longo do caminho. Adultizar uma criança é desperdiçar um tempo curto e insubstituível, que constrói a saúde emocional, social e cognitiva de toda a existência. Respeitar o tempo de ser criança, preservá-lo e vivê-lo intensamente, é um dever inquestionável e inabalável, não apenas de amor, mas de justiça para com quem ainda está aprendendo a ser.
Proteger as crianças dos malefícios das redes sociais não implica defender regulação ampla e irrestrita. Censura, sob qualquer pretexto, é inaceitável. O que está em jogo é a preservação da etapa mais breve e decisiva da vida, a infância, seguida da adolescência, períodos que alicerçam a arquitetura emocional, cognitiva e social que sustentará a vida adulta. Estabelecer limites no ambiente digital não é moralismo, é cuidado concreto com sono, atenção, autoestima, segurança e capacidade de vínculo, para que esse tempo curto e precioso cumpra sua função de maturar afetos, fortalecer o senso de si e preparar uma autonomia responsável. Quando preservamos essa fase do desenvolvimento, favorecemos adultos mais críticos, compassivos e saudáveis, com maior bem-estar global. Isso implica pensar, refletir, implicar-se, responsabilizar-se. Se precisar, peça ajuda.
*Antônio Geraldo da Silva é médico formado pela Faculdade de Medicina na Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES. É psiquiatra pelo convênio HSVP/SES – HUB/UnB. É doutor pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto – Portugal e possui Pós-Doutorado em Medicina Molecular pela Faculdade de Medicina da UFMG.
Entre 2018 e 2020, foi Presidente da Associação Psiquiátrica da América Latina – APAL. Atualmente é Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Diretor Clínico do IPAGE – Instituto de Psiquiatria Antônio Geraldo e Presidente do IGV – Instituto Gestão e Vida. Associate Editor for Public Affairs do Brazilian Journal of Psychiatry – BJP. Editor sênior da revista Debates em Psiquiatria. Review Editor da Frontiers. Acadêmico da Academia de Medicina de Brasília. Acadêmico Correspondente da Academia de Medicina de Minas Gerais.