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Saúde e Nutrição com Clayton Camargos: Vale Tudo para emagrecer?

Vale vomitar culpa? Vale injetar magreza em seringas semanais? Vale suprimir a fome a qualquer custo?

O Brasil, mais uma vez, sintoniza em horário nobre com um dilema que nunca saiu de cena. Na refilmagem da novela Vale Tudo, a pergunta que ecoa desde 1988 ressurge com novo fôlego: vale a pena ser honesto neste país? 

Desloco a inquietação do campo da ética nacional para um território mais íntimo e corruptível: o corpo. Em tempos de culto à performance, filtros e prescrições exóticas, a pergunta que proponho é tão incômoda quanto inevitável; vale-tudo para caber numa imagem para ser?

Vale vomitar culpa? Vale injetar magreza em seringas semanais? Vale suprimir a fome a qualquer custo? Vale a expiação do jejum intermitente? Vale o chicote do crossfit? Vale o soro na veia que promete ressurreição vitaminada? Vale triturar o prazer e servir o corpo à estética como edifício antichoque?

A resposta que retumba nas redes, nas farmácias, nos consultórios e nas balanças é: sim, vale. Mas é justamente aí que começa a nossa crônica. Vivemos numa sociedade em que a magreza foi promovida de estado corporal a capital simbólico. Ser magro virou senha de acesso ao prestígio. A obesidade, por sua vez, foi estigmatizada à periferia.

De acordo com projeções da World Obesity Federation, refletidas por estudos da Fiocruz, até 2044 quase metade da população brasileira estará obesa. Uma coordenada cataclísmica de saúde pública. Falo de uma obesidade sindêmica, conceituada pela The Lancet Commission on Obesity em 2019: um fenômeno que emerge da intersecção entre determinantes biológicos, sociais, econômicos e ambientais.

A obesidade custa alto: em 2018, o Sistema Único de Saúde (SUS) destinou R$ 378 milhões apenas em internações, subindo para R$ 1,39 bilhão ao incluir as comorbidades. 

Um dos perigos reais: o excesso de peso foi o principal fator de risco no crescimento de mortalidade por câncer de cólon, associado a 5% a mais de mortes em mulheres no Brasil em 2020. 

Emagrecer pode salvar vidas, mas isso não justifica a voracidade dos mecanismos que nos empurram para padrões inatingíveis.

Esses dados, que deveriam acionar políticas públicas robustas, viraram combustíveis para o espetáculo do emagrecimento coreografado por algoritmos e algoritmizado por neuroses. 

A sindemia do excesso ponderal se entrelaça com a obsessão estética.

O corpo como território do espetáculo 

Vivemos tempos em que o corpo não é mais abrigo, e sim vitrine. A magreza representa potência. Representa mesmo? Ou apenas performa?

Guy Debord, em A Sociedade do Espetáculo (1969), já denunciava: não vivemos, apenas exibimos. O corpo, hoje, é palco iluminado por filtros, ring lights e promessas editadas. Não se quer saúde, mas curtidas. 

Nesse palco de vaidades, o emagrecimento é vendido como ritual de purificação: o exorcismo de transbordamento do peso. O show da magreza. A balança virou tribunal. O abdômen, um altar. O espelho, um campo de batalha. 

Nas redes sociais, influenciadores exibem corpos multiestruturados sob a luz de estúdios e ângulos ambiciosos que projetam antes e depois fictícios; reforçando a falta de limites. O corpo vira tela e nós, espectadores de nós mesmos.

Freud entenderia essa mise-en-scène. Para ele, a cultura exige renúncias. O emagrecimento é uma tentativa de agradar o superego coletivo, esse tirano que dita como devemos ser para merecer amor. 

O que o corpo diz quando submetido a dietas extremas? Deseja e se renega. O superego pressiona “seja magro” enquanto o id suplica por indulgências. 

Jacques Lacan acrescentaria que não desejamos a magreza per si, mas o desejo do outro por ela. Buscamos a legitimação. Queremos caber no vestido, na calça, na cadeira, no feed, na imagem do outro. Só que esse “Outro” voraz nunca se satisfaz.

Biopoder, culpa e vigilância

O controle dos corpos já não depende apenas de instituições. Ele habita em nós. A mulher que julga o corpo da vizinha. O ex-portador de obesidade que vigia o cardápio dos colegas: a vítima se converte em algoz. O influenciador que vende disciplina como se fosse virtude moral. Todos tornaram-se carcereiros de si e do outro, e são guardiões do novo panóptico digital.

A pedagogia da lamentação se instalou com perfeição cirúrgica. Se você engordou, a autoria é sua. Se emagreceu e engordou de novo, mais juízo. Porque o fracasso é sempre do indivíduo, nunca do modelo, da indústria, da genética e da sociedade.

Uma pesquisa recente mostrou que 76% dos brasileiros reconhecem a obesidade como doença, mas 65% ainda acreditam que emagrecer é só questão de “força de vontade”. Se você não emagreceu é porque não se esforçou.

O que faz o mercado diante disso? Sorri. Lucra. Alimenta-se da nossa ansiedade como se fosse proteína premium. Em 2025, o Brasil já movimenta mais de 170 milhões de dólares ao ano com produtos e serviços para emagrecimento. A previsão? Dobrar até 2030. 

E o que se vende? Vende-se de tudo: shakes mágicos, fórmulas sem lastro científico, chips de luz, app de ayahuasca e muito mais! Fantasia terapêutica servida como ciência. Ainda bem que o fígado é resiliente: é o órgão que metaboliza o presente e adia o colapso no futuro.

Magreza sob contrato: com cláusulas em letras miúdas e promessas de papel

A ciência, é claro, oferece avanços reais. Os análogos de GLP1 (liraglutida, dulaglutida, semaglutida e tirzepatida) revolucionaram o tratamento da obesidade, especialmente para quem vive com diabetes tipo 2. Potentes, sim. Mas logo foram fetichizados: de terapia, passaram a tentação, sinônimos de status e magreza relâmpago.

Como qualquer ferramenta, exigem contexto e cuidado. Sem isso, o efeito se esvai. Um estudo da Universidade de Oxford, de maio desse ano, mostrou que até 10 meses após a interrupção, o peso retorna. É um trabalho de revisão sistemática que incluiu 11 ensaios (com cerca de 6.730 participantes) e que abre fronteira para novas investigações.

A cirurgia bariátrica salva vidas, mas dialnet.unirioja.es apresenta recidiva ponderal após alguns anos. 

Os estudos nos mostram que 95% das pessoas que emagrecem com dieta e exercício recuperam o peso em até dois anos. A natureza biológica resiste.

O corpo não é arquivo editável. É memória viva e o que nele foi vivido insiste em voltar. Os adipócitos têm lembranças. Eles assombram arrastando correntes pesadíssimas.

A tecnologia tem data de validade.

A medicina entrega ferramentas, não milagres. O problema é que o mercado prefere prometer o paraíso, mesmo que venha com cláusulas em letras miúdas e prazo de expiração. Milagres ainda são monopólio da ficção.

Eis o paradoxo: a biologia não obedece ao Instagram.

O sintoma por trás da fome

O que esquecemos nessa avalanche de “protocolos” é que há outro tipo de fome. Invisível e feroz. Por trás da obesidade, há algo que o Índice de Massa Corporal (IMC) não mede: a fome simbólica. Comer é, muitas vezes, um ato de sobrevivência emocional. A ausência que o espinafre não resolve.

Uma pesquisa publicada em 2024 mostrou que a educação alimentar infantil reforça moralismos: comida “boa” versus “ruim”, prazer versus punição. Crescemos aprendendo que comer demais é fracasso, que fome é fraqueza e o corpo precisa ser domado; reforçando moralismos alimentares, ou o que chamo de “moralismo nutricional”. A cultura ensina, a sociedade repete, o mercado lucra e o corpo adoece.

A dieta é existencial. Cada caloria vira culpa. Cada porção, penitência. Não é sobre o que se come, mas sobre o que se sente ao comer.

Gordofobia: o peso do preconceito

A historiadora estadunidense Sabrina Strings em Fearing the Black Body: The Racial Origins of Fat Phobia (2019), desvendou a origem racial e colonial da repulsa ao corpo gordo. No Ocidente, a gordura é abjeção. A magreza, por sua vez, é ascese. Essa lógica brutal segue em curso. 

Não se trata apenas de um problema estético. É sistêmico. É sobre quem tem direito a cuidados e quem recebe apenas julgamentos. Isso não é ciência, e sim ideologia. E, como toda ideologia, serve a quem detém o poder. É sobre o que se tolera e o que se exclui.

Não há problema em querer emagrecer. Ao contrário. A questão é paradigmática: emagrecer para ser aceito não é cuidado. É capitulação. Quando o corpo vira condição de pertencimento, o cuidado se converte em dispositivo de submissão.

Mas se há algo que ainda vale, que seja reescrever o enredo com novas gramáticas do corpo:

  • Vale escutar a ciência, que diz que saúde é plural e não se resume a IMC.
  • Vale entender que perder 10% do peso corporal já traz ganhos imensos.
  • Vale compreender que obesidade é doença crônica, não desvio de caráter.
  • Vale comer com prazer, não com culpa!
  • Vale exigir políticas públicas que taxem ultraprocessados, assegurem acesso a alimentação saudável, corpo em movimento, psicoterapia, medicamentos e respeito.
  • Vale envelhecer com autonomia, rugas, histórias e dignidade.
  • Vale, sobretudo, habitar o corpo, em vez de performá-lo.

Epílogo: o peso da leveza

Desde o final da 1ª versão de Vale-Tudo, a pergunta sobre honestidade segue em aberto. No palco do corpo essa honestidade exige mais do que coragem. Reivindica rebeldia. Requer autoestima para dizer não à estética estandardizada. Impõe ousadia para aceitar a imagem que se tem, sem pedir desculpas. Reclama lucidez para entender que nem tudo o que emagrece cura, e que há formas de cura que não cabem na balança.

A verdadeira dúvida nunca foi “vale tudo para emagrecer?” Isto é, o que você está disposto a perder para caber em um ideal que não foi feito para você? 

A resposta é dura: a verdadeira honestidade começa no espelho. Somos estimulados a expulsar não só a gordura, mas a própria alteridade. A diversidade corporal virou exílio.

O corpo real não pede aplauso. Pede respeito. E respeito não se injeta. Se constrói. Que pese o pensamento. Que pese o cuidado. Que pese o afeto. A verdadeira leveza, que não se pesa, é a que ninguém nos tira. É a impermanência do vale o quanto pesa.

Alimentação saudável é força e proteção. Informação é prevenção. Você tem alguma dúvida sobre saúde, alimentação e nutrição? Envie um e-mail para dr.clayton@metafisicos.com.br e poderei responder sua pergunta futuramente. Nenhum conteúdo desta coluna, independentemente da data, deve ser usado como substituto de uma consulta com um profissional de saúde qualificado e devidamente registrado no seu Conselho de Categoria correspondente.

 

*Clayton Camargos é sanitarista pós-graduado pela Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/Fiocruz. Desde 2002, ex-gerente da Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC) do Ministério da Saúde. Subsecretário de Planejamento em Saúde (SUPLAN) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Consultor técnico para Coordenação-Geral de Fomento à Pesquisa Em Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Coordenador Nacional de Promoção da Saúde (COPROM) da Diretoria de Serviços (DISER) da Fundação de Seguridade Social. Docente das graduações de Medicina, Nutrição e Educação Física, e coordenador dos estágios supervisionados em nutrição clínica e em nutrição esportiva do Departamento de Nutrição, e diretor do curso sequencial de Vigilância Sanitária da Universidade Católica de Brasília (UCB). Atualmente é proprietário da clínica Metafísicos.

CRN-1 2970.

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