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Francisco Galeno: relembre a trajetória do artista, que eternizou sua obra em Brasília

Leia entrevista exclusiva que o artista concedeu à Revista GPS|Brasília em 2016

No Palácio do Itamaraty, ele está ao lado de Portinari, Di Cavalcanti e Bruno Giorgi. Autodidata, ele vive entre os arredores de Brasília e as ilhas do Delta do Parnaíba, de onde resgata pipas, rendas e carreteis, os elementos da infância que permeiam a sua arte modernista“, escreveu a jornalista Raquel Jones em uma reportagem especial feita com o artista plástico Francisco Galeno, que morreu nesta segunda-feira (2), no Piauí.

O texto foi publicado originalmente na 15ª edição da Revista GPS|Brasília, em outubro de 2016, e relembra a trajetória do artista, que tinha um ateliê em Brazlândia, no Distrito Federal, e é autor de uma das obras de arte mais icônicas de Brasília: o painel da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, localizada na 308 Sul. Leia a matéria na íntegra:

 

O cabelo rebelde chama a atenção. Agora, grisalhos, contrasta com a pele bronzeada de sol. De botina de couro, calça jeans e regata, ele compõe o visual com pulseiras nos dois pulsos, anéis de ouro e brincos de argola. Francisco Galeno parece vestir sua própria história. É um homem da praia e também do campo. Neto de vaqueiro, filho de pai pescador e mãe rendeira, o artista nasceu numa das ilhas do Delta do Parnaíba, no Piauí, e cresceu em Brasília. Tem estilo único. Lembra um roqueiro cowboy ou um curumim arteiro, apelido com o qual ficou conhecido pelo documentário de Marcelo Diaz, que faz uma trajetória à sua terra natal.

Galeno é uma joia rara da história da arte brasileira. Autodidata, aprendeu a pintar, observando os grandes mestres, inebriado pelas obras de Alfredo Volpi, Rubem Valentim e Athos Bulcão. Foi olhando para dentro de si, rememorando sua infância nordestina, que atingiu repercussão internacional. Sua obra está eternizada nos painéis da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, na 308 Sul, no salão de recepção do Palácio do Itamaraty, bem ao lado da bela e rara tapeçaria feita por Burle Marx.

Entrevistar Galeno não é tarefa fácil. São seis meses do ano morando no Delta e o restante em Brazlândia, região administrativa que fica a 45 quilômetros de Brasília. Na época em que se deu o primeiro contato, estávamos apreensivos. Além da distância, corria o boato de que estava gravemente doente, com um tumor na laringe. Não havia o que fazer, senão esperar notícias de um dos últimos modernistas vivos de sua geração. Mas para a nossa surpresa, ele atendeu a nossa ligação de primeira. Com a voz de timbre forte e ao mesmo tempo suave, prontamente marcou a entrevista e nos encontramos em seu ateliê.

Aparentando um pouco mais magro que o de costume, ele confidenciou a enfermidade. “Tive muita sorte. Comecei a sentir um incômodo no ouvido e já estava sem 80% da audição. Achei que fosse água no ouvido, mas o médico que me atendeu no Delta diagnosticou o câncer. Dois dias depois, chegou de Teresina o resultado, confirmando. Foram 30 sessões de radioterapia e seis de quimioterapia”, confidencia o artista, de 59 anos.

O câncer de Galeno foi o mesmo do conhecido ator norte-americano Michael Douglas. Causado pelo HPV, doença sexualmente transmissível, tem chances de cura de 90%. “Eles ficaram admirados com minha recuperação. Foram três meses da época em que descobri até ficar curado, em maio”, revela.

Renovado, pronto para o trabalho, o artista está a todo vapor. Em novembro, se junta com outros artistas numa exposição no Rio de Janeiro sob a curadoria de Karla Osório, quem detém a exclusividade de sua obra. Em dezembro, Galeno parte para o Delta, onde mantém um ateliê. Passar pelas dunas de areia, pelas carnaúbas de sua terra natal tem sido um resgate de suas origens. Foi aos oito anos de idade que Galeno partiu com a família para a nova Capital e ficou 23 anos sem voltar para o Morro da Mariana, a ilha em que nasceu. “Estou completando a infância que eu não vivi lá. O artesão que trabalha comigo é como se fosse o meu avô. Espiritualmente, estou ali conversando com meus antepassados”.

O início

Corre em suas veias a predileção pela arte. Nascido numa família de artesãos, o trabalho manual era uma realidade. Seu bisavô era o Mestre Capina, morava na beira do Rio Longa, no Piauí, era capataz do Almirante Gervásio e fazia cela, arreio e canoas. Seu pai herdou a habilidade em lidar na fazenda. Plantava, colhia, vendia o excesso e o restante servia para sua subsistência.

Em 1964, seu pai subiu num pau de arara, numa viagem que duraria um mês com destino a Brasília. “Ele chegou no dia do Golpe (Militar) e felizmente conseguiu desembarcar, pois conhecia um encarregado. Depois de dois anos, mandou nos buscar”, conta.

Galeno, a mãe e os quatro irmãos chegaram à Cidade Livre e, uma semana depois, foram parar em Brazlândia, onde o artista vive até hoje. No começo, Galeno queria ser jogador de futebol, mas o esporte era incipiente na cidade. Foi acompanhando o irmão Batista, que fazia esculturas, que Galeno começou a se aproximar da arte. Curioso, queria estar perto dos artesãos da cidade. Aos 18 anos, foi para a Marinha e, nas horas vagas, desenhava.

Galeno passou a ler livros de História da Arte. Na cabeceira da cama, Picasso, Cézanne, Van Gogh, Lautrec, Renoir. O jovem também adorava música. Foram dois anos de teoria na Escola de Música de Brasília. “Foi muito importante para a minha formação artística. Hoje, sei distinguir o que é um fagote, uma viola. A diferença de uma sinfonia, uma orquestra”, conta. Galeno estudava flauta, mas não teve tempo para aprofundar, a Escola de Música começava um curso à noite, mas ainda estava sendo implantado.

Inquieto, Galeno foi para o Teatro Galpão nos anos 1970. Na época, trabalhava no Banco Central e, após o expediente, ensaiava as peças. “Não existia profissionalismo na época. Tudo estava acontecendo no teatro, na música, na arte. Vivi momentos muito importantes. Convivíamos com as pessoas sem saber quem eram, como o Renato Russo e o pessoal do Aborto Elétrico”, lembra. “Era mais um espectador daquela efervescência que rolava no Plano Piloto. Quando você é jovem, tudo é bonito”, completa.

“No Delta do Parnaíba, estou completando a infância que eu não vivi. Se me perguntassem hoje o que eu queria ser, eu diria: ‘Quero ser menino'”

A pintura

Foi nos anos 1970 que Galeno fez um curso de pintura no Centro da Criatividade onde funcionava a Fundação Cultural, com direção de Luiz Aquel, em Brasília. “Foi a primeira vez que eu usei modelo vivo. Lá comecei a usar as cores fortes. Um dia, uma mulher disse que eu tinha que sujar um pouco a cor senão as pessoas não conseguiriam olhar para a minha obra. O que ela não sabia é que na mesma época artistas do Parque Lage, no Rio de Janeiro, já declinavam para esse formato de pintura”, conta.

Foi convivendo com Athos Bulcão e Rubem Valentim que Galeno foi desenvolvendo sua obra. Freqüentava exposições em galerias onde estavam os mestres e participava de salões de arte onde eles eram jurados. Um dia, foi até a casa de Valentim para lhe mostrar seu trabalho. O pintor que chegou a lecionar na UnB disse que ele daria um bom ilustrador. Mas Galeno quis ir além e Valentim foi convencido disso. Tempos depois, no Salão de Arte Riachuelo, Valentim era jurado da banca examinadora e deu o prêmio de primeiro lugar para Galeno.

Naquela época, Galeno pintava figura e paisagem. Com o tempo, passou a pintar elementos da infância que estavam no seu inconsciente imaginário e que se tornaram característicos de seu trabalho. Das lembranças, a pipa, o carretel, a lamparina, o anzol e as rendas que saíam das mãos de sua mãe.

O artista autodidata se consagrou no cenário nacional. Foram muitos prêmios. Foi ganhador do Salão das Cidades Satélites que foi de suma importância para o desenvolvimento de seu trabalho, pois os artistas não tinham local para mostrar o que estavam fazendo. Em 1982, foi selecionado para o Salão Nacional, mas o primeiro lugar só aconteceu em 1986. “Foi emblemático para mim. Era casado, tinha filhos, morava de aluguel. Com o dinheiro do prêmio, comprei uma casa e assim resolvi sair do banco e passei a me dedicar integralmente à pintura”, conta.

Nesse período, Galeno conheceu Vera Brant, uma dama da sociedade brasiliense, entusiasta da arte e dos novos talentos. “Ela me aconselhou a mostrar meu trabalho para Ana Maria Niemeyer que tinha uma galeria no Shopping da Gávea. Quando fui para o Rio, passei no endereço e deixei meus catálogos com um cartão. Seis meses depois, recebi um recado dela me convidando para um exposição na cidade carioca. Achei até que fosse brincadeira, mas era verdade”, lembra.

Galeno pintava e os desenhos que fazia pediam para saltar da tela e ganhar vida. Assim, começou a fazer esculturas com seus objetos. Sempre os elementos da infância são protagonistas. “Não falo de um mundo que não me pertence, esses objetos definem quem eu sou, de onde vim, a minha família. É a minha alma”, enfatiza.

A Igrejinha

Não há como não comparar Galeno com Alfredo Volpi, que foi um grande defensor da cultura popular brasileira. Coincidência ou não, Galeno foi eleito pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) para pintar os painéis da Igrejinha que antes foram criados pelo pintor ítalo-brasileiro. Os painéis de Volpi foram destruídos por atos de vandalismo. Há sete anos, Galeno recebeu a missão de substituir os painéis, pois eram irrecuperáveis.

“A Igrejinha foi importante porque eu coloquei o pé em Brasília”, explica o artista, que confidencia a resistência das pessoas por ser um artista de uma “Cidade Satélite”. Isso foi bastante latente, quando Galeno começou os primeiros esboços, alguns moradores diziam não ser apropriado. “Acho que houve certo preconceito. Alguns preferiam um artista mineiro para pintar a Via Sacra, mas Brasília não foi feita nesta visão. Comecei a tocar o projeto independente e aí está o resultado”, diz.

Francisco Galeno: relembre a trajetória do artista, que eternizou sua obra em Brasília

Assim como Portinari que pintou a Igreja da Pampulha e foi execrado na época, Galeno foi alvo de comentários maldosos, mas nada que abalasse a sua autoestima. Na época, muitos fiéis criticaram o fato de a Virgem Maria não ter rosto e segurar uma pipa nas mãos, enviando um abaixo-assinado ao IPHAN. Mas, o superintendente do instituto na época, Alfredo Gastal, saiu em defesa do artista. Com o trabalho finalizado, os ruídos deram lugar a elogios. Muitos se emocionaram com a Virgem que, além de carregar a pipa, tinha flores ao invés de coroa e ainda um carretel de linha em volta do pescoço.

Hoje, um quadro de Galeno é uma verdadeira obra-prima. É colecionado por chefes de estado. Começou com o ex-presidente Fernando Collor de Melo, que fazia questão de presentear personalidades com a sua obra. Depois, Fernando Henrique Cardoso começou a propagar sua arte para o mundo. O último a receber um trabalho seu foi o presidente norte-americano Barack Obama, pelas mãos da ex-presidente Dilma Rousseff. Ele é o artista mais novo que está ao lado de Portinari, Di Cavalcanti e Bruno Giorgi no Palácio do Itamaraty.

Entretanto, nada tira de Galeno o ar simples do menino que adorava pular no rio quando garoto, brincar nas dunas de areia, um jovem que só almejava a liberdade. Pai de seis filhos, Galeno não se prendeu nem ao casamento. Foram três, dos quais teve dois filhos com cada mulher. Morou junto com mais de seis mulheres. A última havia saído há duas semanas de sua casa quando fizemos a entrevista. “Não sou uma pessoa difícil, mas o meu universo é diferente. O artista tem seus momentos de introspecção. Meu ateliê também é na rua ou quando estou viajando, às vezes estou sonhando acordado”, explica.

Sobre seus sonhos ou projetos que quer realizar, Galeno não se programa. “Nunca fui preparado para aquela coisa de ‘busque seus sonhos’. Para mim, sonho é aquele doce que, se você não encontrar numa padaria, deve ir em outra”, brinca.

Do futuro, o que se espera é o presente. É ir para o Delta e produzir sua obra. Um poema escrito em um catálogo seu define muito a sua vida. Trata-se de Fernando Sabino. “Quando eu era menino, os mais velhos perguntavam: o que você quer ser quando crescer? Hoje não perguntam mais. Se perguntassem, eu diria que quero ser menino”.

*Por Raquel Jones. Matéria originalmente publicada na edição 15 da Revista GPS|Brasília

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