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Por Thiago Félix*
Em tempos de hiperresponsabilização penal e pressões públicas por punição, observa-se uma distorção preocupante no âmbito corporativo: a criminalização automática de sócios e administradores apenas por ocuparem posições formais de gestão, independentemente da existência de provas de conduta dolosa ou culposa.
Essa prática, motivada muitas vezes por uma lógica de resultado ou pela ânsia de controle institucional, fere princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito, como a responsabilidade penal subjetiva e a intranscendência da pena. Este artigo propõe uma análise crítica dessa tendência, à luz da Constituição Federal, do Código Penal e do Código de Processo Penal. O objetivo é reafirmar que nenhum cargo ou contrato social substitui a prova da culpa.
A Lei é clara: a culpa precisa ser provada
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estabelece, em seu artigo 5º, inciso XLV: “Nenhuma pena passará da pessoa do condenado.”
Esse dispositivo consagra o princípio da intranscendência da pena, reafirmando que a responsabilidade penal é pessoal e intransferível.
O Código Penal, por sua vez, dispõe no artigo 13: “O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.”
Esse artigo estabelece a necessidade de nexo causal entre a conduta do agente e o resultado do crime, sendo imprescindível a demonstração de que o acusado contribuiu de forma direta ou indireta para a ocorrência do delito.
O Código de Processo Penal complementa, em seu artigo 41: “A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.”
Portanto, a simples presença em um contrato social ou conselho não autoriza, por si só, a imputação criminal. É imprescindível a descrição clara, precisa e individualizada da conduta atribuída ao acusado.
Teoria do domínio do fato: entre técnica e abuso
A teoria do domínio do fato, amplamente discutida após o julgamento da Ação Penal 470, tem sido frequentemente invocada para sustentar acusações contra gestores. No entanto, sua aplicação demanda critérios técnicos rigorosos: é necessário que o agente detenha o controle funcional do fato, ou seja, que tenha efetiva capacidade de decisão sobre a prática criminosa.
Utilizá-la como justificativa automática para imputar culpa a administradores ou conselheiros é distorcer seu alcance. Em estruturas empresariais complexas, descentralizadas e tecnicamente segmentadas, nem sempre o gestor possui poder direto ou conhecimento sobre condutas ilícitas. A responsabilidade penal, portanto, só existe quando houver omissão consciente e relevante.
Mecanismos internos de integridade: prevenção e defesa
A adoção de programas internos de integridade, fiscalização e resposta a ilícitos — os chamados mecanismos de integridade — tornou-se uma das principais ferramentas de governança empresarial e de proteção penal.
Sua existência documentada demonstra zelo, boa-fé e atuação diligente dos administradores. Em contrapartida, a ausência desses mecanismos pode indicar negligência — mas isso, por si só, não basta para imputação penal. É imprescindível comprovar que o agente sabia da irregularidade e se omitiu de forma relevante.
Em termos técnicos: os mecanismos de controle não isentam, mas reforçam ou afastam a culpa conforme sua efetividade e a conduta do gestor.
Considerações finais
A responsabilização penal de sócios e administradores só é legítima quando houver demonstração clara de conduta pessoal, dolosa ou culposa, relevante para a prática do delito. Atribuir culpa a alguém apenas por seu cargo é retroceder a um modelo de responsabilização objetiva — incompatível com o Direito Penal moderno.
O processo penal não é instrumento de coerção institucional nem uma resposta simbólica à opinião pública. Ele deve ser regido por legalidade, proporcionalidade e tecnicidade.
Porque justiça sem culpa comprovada é injustiça disfarçada. E sócio não é sinônimo de culpado.
Referências
1.BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Art. 5º, inciso XLV.
Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
2.BRASIL. Código Penal.
Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
Art. 13 – do nexo de causalidade.
Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm
3.BRASIL. Código de Processo Penal.
Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941.
Art. 41 – requisitos formais da denúncia.
Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm
4.MENDONÇA, Andrey Borges. Teoria do Domínio do Fato e o Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2013.
5.BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Geral. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.
Sobre o autor:
*Thiago Félix é advogado criminalista com atuação nacional em casos complexos e júris. Professor e referência em Advocacia Penal Estratégica.
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