A comissão enviada para o centro do Brasil em junho de 1892 carregava, entre seus pertences, cadernetas para o registro da viagem. Batizada de Comissão Exploradora do Planalto Central, ou Missão Cruls – por ser liderada pelo belga Louis Ferdinand Cruls –, era formada por 21 pessoas que tinham a missão de estudar e definir a área de 14 mil metros quadrados da nova capital, prevista no artigo 3º da Primeira Constituição da República.
Em uma dessas cadernetas, de um militar chamado Hastínfilo de Moura, tem um desenho feito a mão de um quadrilátero do que viria a ser o DF. Outras trazem manuscritos que descrevem os percalços encontrados pelo caminho – incluindo onças e cobras –, as divergências de opiniões entre os estudiosos, as cachaçadas, os bailes, as famílias que os acolhiam, e ainda vegetações, animais e pessoas encontradas na região.
Essa caderneta está guardada no Arquivo Público do Distrito Federal (ArPDF), junto com uma fotografia original da mesma missão, impressa em albumina, uma técnica que usava chapa de vidro com uma camada da proteína extraída da clara de ovo como meio ligante para fixar os sais de prata no negativo, algo muito raro.

Foto: Arquivo Público

Foto: Arquivo Público
“Um dos documentos mais importantes do arquivo que conseguimos é a ata oficial, única, da Comissão, de junho de 1982, que tinha sido colocada em cima dos picos dos Pirineus, em Pirenópolis, o ponto mais alto do Planalto Central, assinada por todos. Tinha uma teoria de que essa ata tinha sido entregue para JK, mas não havia sido localizada. E há poucos anos a recuperamos na casa da neta de Hastínfilo, no Rio, dentro de um envelope. E ela nos disse que ia jogar no lixo. Imagina”, conta o historiador Elias Manoel da Silva, diretor de Pesquisa, Difusão e Acesso do Arquivo Público do DF.
A instituição guarda também a primeira edição bilíngue, em francês-português, do relatório final da Missão Cruls, e ainda a única edição do chamado Atlas dos Itinerários, publicado em 1894, que traz a topografia original por onde os integrantes da comissão caminharam na região. “A partir da Pedra Fundamental de 1922, prefeitos dos municípios vizinhos começaram a fazer loteamentos e vendê-los. Tinha Platinópolis, Planaltinópolis, Vila Federal, Vila Nossa Senhora de Fátima. Temos aqui um título de posse de uma pessoa que comprou um lote no terreno onde está construída Brasília, além de várias cartas destinadas à Novacap de pessoas dizendo que tinham lotes. Mas não sabemos como isso foi resolvido judicialmente”, revela Elias.
Já de alguns anos depois, chama a atenção um conjunto de fotografias feitas de avião e que compreendem todo o território, antes da definição das fronteiras do atual DF, da década de 1950. Outras atas e relatórios completam a documentação da época, que marca o início da história de Brasília, antes de Juscelino Kubistchek bater o martelo no famoso comício em 1955, em Jataí (GO), e dizer que mudaria a capital do Brasil se fosse eleito. A decisão política de JK usou toda essa documentação feita décadas antes para colocar em prática a construção da capital. A primeira vez que ele visitou foi em outubro de 1956. A partir daí, outras documentações importantes surgiram, durante os três anos e dez meses da construção, até a inauguração de Brasília, em 21 de abril de 1960.
Documentos e outros objetos dessa relevância fazem parte de um acervo riquíssimo do Arquivo Público do DF espalhados por cerca de três mil metros quadrados do galpão onde fica a sede, no Setor de Garagens Oficiais Norte, perto do autódromo. Uma instituição relativamente nova – criada oficialmente há 33 anos – mas que guarda uma história bem anterior à inauguração da cidade.
Uma das salas, batizada de Honestino Guimarães, é formada por dezenas de estantes de ferro com caixas com documentos importantes de Brasília. Tem desde contratos com operários da época da construção a recortes de jornais que falavam da nova cidade. Uma outra sala, especialmente climatizada, guarda uma estante de madeira que parece ter um monte de rolinhos de papel, que na verdade são o acervo cartográfico, com mapas de várias construções de Brasília, tudo escrito a mão, com os cálculos feitos pelos engenheiros. Para manusear, somente com luva e com muito cuidado. Inclusive, após a recente queda do viaduto no Eixão Sul, integrantes do governo e estudantes da Universidade de Brasília foram lá atrás das contas originais. Documentos de viadutos e pontes que podem ajudar na manutenção das áreas que a cidade precisa.
O acesso ao público é feito pela Biblioteca, batizada de Ernesto Silva, pioneiro e uma importante figura para a cidade. As fotos e vídeos são impressionantes. Algumas sem foco, descentralizadas. Mas nada disso importa ao observar que registraram encontros, visitas, os primeiros momentos de uma cidade que começou a nascer no meio do Cerrado. As máquinas e operários trabalhando, os monumentos sendo erguidos, um espaço sendo ocupado.
Um Diário de Brasília traz o registro quase que diariamente, a partir de 1956, do que era feito por aqui. Desde o horário em que o avião trazendo JK pousava, até solenidades e personalidades presentes. Tem ainda uma coleção completa da revista Brasília, com primeiro exemplar de janeiro de 1957, produzida pela Novacap, que tinha como presidente Israel Pinheiro e diretores Bernardo Sayão, Ernesto Silva e Iris Meinberg. A Novacap foi a grande ação política do governo de JK, que deu autonomia para Israel Pinheiro coordenador da construção.

Foto: Arquivo Público
A publicação foi feita até 1961 mensalmente, relatando em detalhes a construção de Brasília, incluindo fotos. “A revista é incrível e, de certa forma, registrou tudo. Mas talvez tenha faltado na Novacap um departamento de memória, com um historiador naquela época. Seria tão legal. Essa preocupação que começou com o Walter em 1978 deveria ter começado antes. Eles estavam construindo uma capital, uma raridade muito grande”, diz Elias Manoel da Silva.
A concepção=
O arquivo começou com a ação de um homem que se intitula “operário da cultura”, que iniciou um trabalho para preservar a história de Brasília. O baiano Walter Mello, em Brasília desde 1960, tinha sido nomeado para a diretoria de patrimônio da Secretaria de Educação e Cultura em 1978. Representantes das unidades da federação, em encontros oficiais, cobravam do DF um arquivo público. Até então não se sabia muito do que se tinha da época da construção. Mello foi atrás primeiro do que significava a instituição.
O grupo de funcionários da então diretoria de patrimônio começou a buscar esses documentos. “Devem estar na Novacap”, teria dito um deles. Em uma salinha, meio que guardados sem cuidado, estavam lá. Atas de reuniões, contratos de trabalhos e serviços, fotos, filmes. Era o início do que precisavam para começar um arquivo. Mas era preciso mais. Outros órgãos tinham de colaborar.
Foi um trabalho de formiguinha. Documentos, fotos, filmes, mapas, projetos, notas fiscais, contratos, atas. O acervo foi crescendo. Oficialmente, a instituição intitulada Arquivo Público do Distrito Federal foi criada em 1985.
A sorte de Brasília é que, por ser uma cidade nova, muitos de seus fundadores estavam vivos para contar sua história e deixá-la registrada. Tão logo foi criado, os funcionários do Arquivo Público faziam, pelo menos uma vez por mês, um evento chamado de Chá da Memória. Walter Mello comprava o chá com dinheiro do próprio bolso, uma outra colega trazia a toalha, outra os biscoitos, e eles espalhavam fotos pela mesa, reuniam os pioneiros – Ernesto Silva estava sempre presente – e pediam ajuda para identificar quem era quem nas imagens. Isso permite que hoje praticamente todas as fotos estejam identificadas, mostrando, por exemplo, que passaram por aqui durante a construção estrangeiros, políticos e até artistas, como uma foto que mostra a visita de Di Cavalcanti.
Era possível conversar com um pioneiro, ouvir casos engraçados da época, falar do barro, da calmaria, da vida social. Atualmente, mais de 60 anos que os primeiros chegaram por aqui, alguns que eram crianças ainda guardam algumas lembranças. Memórias essas que não podem ser esquecidas. Nunca. Mas alguns desses pioneiros já morreram. Fizeram sua parte como candangos, e deixaram seu legado. Parte desse legado guardado ali, no galpão. Alguns, as famílias doaram seus documentos, como o próprio doutor Ernesto, além da jornalista Yvonne Jean, do segundo prefeito de Brasília Paulo de Tarso, Asta Rose Alcaide, Juca Chaves, Luiz Neto, do arquiteto Gladson Rocha, Ecilda Ramos, Manuel Mendes e até do Brasília Palace Hotel.
Os primeiros contribuidores do fundo público são, além da Novacap, as Secretarias de Comunicação, de Gestão do Território e Habitação, de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente, de Educação, Gabinete do governador, Fundação Cultural do DF e Administrações Regionais.
O acervo está em constante crescimento, além do processo de digitalização, feito em grande escala entre os anos de 2013 e 2014. Atualmente, cerca de 60% do material está digitalizado e continua sendo uma atividade constante, principalmente dos negativos fotográficos. A documentação cartográfica é feita por demanda para atender a sala de consultas. O trabalho lá não para. São apenas 36 servidores, todos apaixonados pelo que fazem.