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Duda Almeida: Brutalismo em Brasília

Em Brasília uma geração pioneira de arquitetos desenvolveu uma arquitetura fortemente influenciada pelos princípios do brutalismo

A arquitetura anseia por intemporalidade – Frank Gehry

Fui ver o filme O Brutalista; e respeitei as três horas e meia de duração, com um interesse que variava do posicionamento crítico em relação às referências arquitetônicas e a empatia provocada pelo sofrimento incessante do personagem principal, imerso e afogado em sua complexidade emocional.  

Os arquitetos não gostam deste filme. O personagem principal, Lázló Tóth, é vagamente inspirado em Marcel Breuer, brilhante arquiteto húngaro formado na Bauhaus, Alemanha, em 1924, que emigrou para os Estados Unidos em 1937. Em terras americanas, assumiu o cargo de Diretor da faculdade de Arquitetura da Universidade de Harvard, formou uma geração de arquitetos americanos, influenciou uma geração de profissionais pelo mundo, e projetou uma série de arranha-céus icônicos, tendo como parceiro, muitas vezes, seu ex-professor, Mies van de Rohe.

Tóth é um sobrevivente do Holocausto, que chega na Pensilvania em buscar de emprego, passa fome, é maltratado, não tem onde morar. Até que ele conhece um milionário americano, Van Buren, que, intrigado com sua inteligência e talento, o convida para projetar um centro comunitário multiuso em homenagem à mãe recentemente falecida, próximo da mansão onde mora. Em uma briga incessante entre o capital e a arte e a criação, que vem embalada em experiências pessoais do Arquiteto, a família do mecenas acaba, por fim, brutalizando profundamente o Arquiteto, mental e fisicamente.  

O diretor do filme, Brady Corbet, diz que a inspiração para a obra de Tóth foi o edifício da Abadia de São João, na região rural de Minnesota. Projeto assinado por Breuer, esta Abadia é considerada uma obra prima, e a história de sua criação envolve grandes nomes da Arquitetura, monges ambiciosos, crises existenciais, brigas sobre a concepção do projeto e seus detalhes decorativos, mudanças no Vaticano e várias, infinitas discursões sobre o seu estilo modernista controverso, duro e meio impessoal.

A arquitetura, no filme, não é apenas um cenário, mas um espelho das tensões sociais. A narrativa explora como a experiência dos imigrantes se entrelaça com a luta dos artistas, transformando-se em um testemunho de vidas desenraizadas – que não se encaixam plenamente em um lugar, em uma comunidade ou sequer em seu próprio tempo. O exílio do protagonista, incapaz de se reconhecer em outra cultura, simboliza um exílio interior mais profundo, compartilhado por todos que enfrentam o conflito entre suas paixões e as exigências pragmáticas da vida cotidiana – um embate constante contra a rigidez e a inflexibilidade imposta pela realidade.

O cenário do filme – uma imponente obra brutalista – despertou grande interesse por esse estilo arquitetônico. Surgido no Reino Unido como resposta à escassez do pós-guerra, o brutalismo se caracteriza pelo uso expressivo do concreto aparente, vidro e aço, sem adornos, evidenciando formas geométricas marcantes e texturas ásperas. O termo tem origem na arte – art brut – e na expressão francesa béton brut (concreto aparente).

Essa linguagem arquitetônica marcou profundamente a produção da segunda metade do século XX de maneira muito ampla, tornando a definição do que constitui, de fato, uma obra brutalista um desafio. Embora muitas construções compartilhem características semelhantes entre si, outras apresentam variações significativas. No entanto, há um traço comum entre elas: a valorização dos materiais em seu estado mais puro e expressivo, ressaltando sua plasticidade crua e evidenciando sua função estrutural. Assim como o protagonista do filme, o estilo carrega contradições e desperta sentimentos ambíguos, mas suas obras persistem, reinventando-se com o tempo – assim como os imigrantes ao recomeçarem a vida em novos territórios.

Polêmico e frequentemente negligenciado, o brutalismo despertou tanto admiração quanto rejeição ao longo dos anos. Muitas de suas obras foram demolidas ou negligenciadas, enquanto debates sobre seu legado e importância se multiplicaram. O estilo já foi descrito como agressivo, pesado, opressivo e até mesmo inóspito. Um crítico americano chegou a afirmar que as construções brutalistas eram “absolutamente horrendas, como se fosse um bombril na retina”. Ainda assim, sua força e impacto continuam a influenciar a arquitetura contemporânea e a suscitar discussões sobre sua relevância histórica e estética.

Brutalistas em Brasília

Em Brasília, durante a década de 1970, uma geração pioneira de arquitetos que viviam e atuavam na cidade desenvolveu uma arquitetura fortemente influenciada pelos princípios do brutalismo. Os elementos característicos desse estilo estão muito presentes no nosso cotidiano, o que pode explicar a sensação de familiaridade despertada pela obra retratada no filme. A transparência dos acessos, os volumes predominantemente horizontais, a primazia da “planta livre”, os tetos homogêneos em grelha ou bidirecionais, a iluminação zenital, os vãos generosos e os balanços expressivos são marcas dessa linguagem arquitetônica que permanece como referência na identidade visual da cidade.

A Universidade de Brasília é o verdadeiro campo de experimentação brutalista da cidade, abrigando algumas das mais expressivas obras arquitetônicas que evidenciam a força e os contrastes deste estilo. O lindíssimo prédio da Reitoria (1972-75), projetado por Paulo de Melo Zimbres em colaboração com Érico Weidle, e o elegante Restaurante Universitário (1969-74), de José Galbinski, com contribuições de Antonio Moraes de Castro e Ernesto Walter, são exemplos emblemáticos dessa estética. A Faculdade de Estudos Sociais Aplicados (1982), assinada por Matheus Gorovitz e Mauricio Azeredo, e a Biblioteca Central da UnB (1969-73), de José Galbinski e Miguel Pereira, reforçam essa identidade brutalista por meio do uso predominante do concreto aparente em composições robustas. Nesses edifícios, o material se manifesta não apenas na estrutura, mas também nos detalhes das vedações, mobiliário e elementos fixos, consolidando a presença marcante dessa linguagem arquitetônica no campus.

Como resultado do trabalho de um time de professores-mestres brilhantes, tanto em sua atuação acadêmica quanto na materialização de suas ideias, destaca-se o conjunto de prédios construídos em 1965 pelos arquitetos Mayumi Watanabe e Sérgio Souza Lima, do Centro de Estudos e Planejamento (CEPLAN) da Universidade de Brasília. Os blocos F, G e I da Superquadra 107 Norte incorporam de forma exemplar as características do conceito brutalista: no lugar dos tradicionais cobogós, utilizam elementos vazados que criam um jogo de luz e sombra, enquanto os icônicos azulejos de Athos Bulcão revestem as paredes do pilotis, conferindo identidade e dinamismo aos edifícios.

Originalmente, essas edificações faziam parte de um projeto maior, a Unidade de Vizinhança São Miguel, que abrangeria as quadras 107, 108, 307 e 308 Norte, concebida para abrigar professores da UnB e membros do corpo diplomático. A proposta buscava reinterpretar, de maneira adaptada, o conceito original das Unidades de Vizinhança previstas no Plano Piloto de Brasília, integrando à quadra residencial equipamentos urbanos essenciais, como igrejas, cinemas, clubes e escolas, e reforçando a vocação da cidade para a convivência comunitária através do desenho urbano.

O período em que João Filgueiras Lima, o Lelé, esteve envolvido na implantação da Universidade de Brasília, embora breve, foi crucial para o aprimoramento de sua formação e para o desenvolvimento de suas técnicas de racionalização da construção, que depois viriam a ser empregadas nas suas muitas obras brutalistas. Entre 1962, ano da criação da UnB, e 1965, quando ele se demitiu junto a outros 223 professores, Lelé especulou, aprimorou e aplicou em seus projetos os princípios da pré-fabricação. Nesse contexto, realizou suas primeiras obras autorais no campus da universidade: os Galpões de Serviços Gerais (1962) e os Edifícios de Apartamentos para Professores, conhecidos como “Colina” (1963), que se tornaram marcos de sua trajetória. Em Brasilia, ele ainda projeta, dentro destes parâmetros estéticos, estruturais e funcionais, o Hospital de Taguatinga (1968), Hospital Sarah Brasília (1976), a DISBRAVE (1965), a sede da Portobrás, atual Dataprev (1974), e a Clínica Daher (1977).

Honestidade construtiva

No filme O Brutalista, assim como na realidade, a Arquitetura vai além do cenário: ela reflete tensões sociais, aspirações humanas e a luta da arte, da sutileza e do poder da criatividade frente a um ambiente hostil. O filme é um manifesto sobre os deslocados, homens, arte, obra, espíritos, estilos – o modernismo, por exemplo, muitas vezes foi associado à liberdade e ao progresso, sendo rejeitado por regimes autoritários que preferiam estilos mais clássicos e nacionalistas.

Assim como o estilo brutalista evoca uma “honestidade construtiva” o protagonista László expõe sua alma em colapso, tentando manter sua integridade em situações adversas – com frieza, como se ele estivesse eternamente confinado atrás daqueles pesados planos em concreto; mas com aquele olhar que entrega o peso silencioso de quem esconde tempestades na alma.

Como o protagonista do filme, o estilo carrega contradições e desperta sentimentos ambíguos, mas suas obras persistem, reinventando-se com o tempo – da mesma maneira que os imigrantes, que recomeçam uma jornada em novos territórios. Histórias não lineares, em trajetórias feitas de adaptações e reconfigurações constantes.

Brasília reflete esse embate por meio de suas construções imponentes, onde concreto, vidro e aço traduzem tanto solidez quanto vulnerabilidade. A monumentalidade da cidade se comunica com a linguagem brutalista, equilibrando austeridade e inovação, imponência e fluidez. Uma dualidade que, afinal, se entrelaça com a trajetória dos imigrantes que construíram a capital, também deslocados de suas origens, mas que encontraram seu espaço e consolidam, dia a dia, um novo centro urbano, diverso e multifacetado culturalmente – desafiador, mas, ao mesmo tempo, repleto de possibilidades.

Duda Almeida: Brutalismo em Brasília

*Duda Almeida é arquiteta e urbanista especializada em Desenho de Arquitetura Assistido por Computador pela UnB, com curso em Gestão de Projetos pela FGV e Mestre na área de concentração Urbanismo – Cidade e Habitação. Atualmente é sócia-proprietária do escritório Reis Arquitetura aqui na capital, mas já atuou como docente nas áreas de Teoria e História e Projeto de Arquitetura e Urbanismo e está se aventurando como autora de livros, tendo lançado recentemente a obra Desenho Urbano e Envelhecimento Populacional

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