Por Hédio Ferreira Júnior
No início dos anos 1980, o sonho da menina Edilene na pequena Taiobeiras, então um vilarejo com menos de vinte mil habitantes no Norte de Minas, era ter uma banca de revistas. Ávida por leitura, a devoradora de livros aguardava com expectativa as revistinhas da Disney – emprestadas – que chegavam da capital Belo Horizonte. Na biblioteca pública da cidade, tinha seus nomes nas fichas de todos os livros de ficção, romance e histórias voltadas ao público infanto-juvenil. E quando acabavam as novidades na sala de leitura, ela tratava de revisitar os títulos antigos.
Corta para 2024. A garota que queria aprender tudo e a ler mais ainda, hoje, é uma mulher que ensina e escreve para os outros lerem. Advogada eleitoral e pós-doutoranda, Edilene Lôbo já publicou 39 livros de autoria própria e outros 33 em coautoria. No mais recente, divide a obra com o advogado-geral da União, Jorge Messias, com apresentação do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. É também reconhecida por sua excelência e contribuições para a academia – é cátedra na Universidade Sorbonne, na França, e faz seu segundo pós-doutorado na Universidade de Sevilha, na Espanha.
Edilene é altiva, de fala firme e acolhedora, ao mesmo tempo. O sotaque mineiro parece ter se perdido nas andanças pelo mundo. Aos 55 anos, está sempre impecavelmente bem vestida, algumas peças costuradas por ela mesma. O trabalho tem sido seu principal compromisso. Ela divide o tempo entre o apartamento na Asa Norte, sua base em Belo Horizonte e a casa da mãe, em Betim, na Região Metropolitana de BH. Além disso, uma agenda frenética de viagens pelo País em seminários, lançamentos de livros, entrevistas e palestras sobre seu projeto Negraiar – de promoção de mulheres e meninas negras nos espaços decisórios.
A jurista, que lida com a mesma desenvoltura com que trata figurões na política e estudantes de vinte anos em sala de aula, venceu as barreiras do machismo, do racismo e da pobreza e colhe ineditismos. O principal deles: ser a primeira mulher negra da história a ocupar um lugar de comando em um tribunal superior do Brasil. Em 2023, Edilene Lôbo foi empossada ministra substituta do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Em seus livros de temas diversos. Fala de inteligência artificial a racismo, passando por feminismo como política pública até chegar a um conceito que acomete muitos brasileiros, mas que poucos sabem a definição: a aporofobia.
Um dos seus livros fala de um conceito criado nos anos 1990, de nome pouco conhecido, mas muito próximo da nossa realidade: a aporofobia. Como surgiu o seu interesse em escrever sobre isso?
A aporofobia é a aversão ao pobre. Uma coisa é ser racista, ser machista, ser elitista. Outra coisa é ser aporófobo. É o ódio ao pobre, que se recusa ou ou fica indignado pela possibilidade de que aqueles em posições sociais ou econômicas inferiores possam crescer. Eu conheço gente assim, que chegou numa casa conhecida de pessoas muito humildes e começou a falar alto: “Está vendo? A crise do Brasil é isso aí. Pobre não tem dinheiro para comer, mas tem dinheiro para pôr uma televisão na parede”. É o inconformismo a qualquer ascensão ou conquista. Isso quer dizer que a gente está lidando com um problema que vai além do elitismo. A aporofobia é isso: a pessoa tem ódio daquela figura, não aceita que ela passe perto ou possa usufruir de bens como ela. Para essas pessoas, a pobreza é culpa do pobre e não da distribuição injusta de bens e riquezas.
A senhora percebe isso crescente na nossa sociedade atual, em que o consumo e a exclusividade ganham cada vez mais espaço, principalmente com as redes sociais?
Eu não tenho observado o fenômeno aporofóbico propriamente dito. Eu tenho observado muito o ressentimento. Que acaba se confundindo um pouco. Essa coisa de não querer ver ninguém crescer e a outra de achar que não é tão bem aquinhoado como deveria. É a classe média que perde espaço, que se sente ameaçada porque tem cotas na universidade, porque tem mais gente tentando andar de avião, falando alto ou criando filas… É pra dizer que você está num grupo, que ele é tão especial, mas tão especial, que não cabe mais ninguém. Agora, que coisa mais cafona, né?!
A senhora veio para o TSE em um momento em que a inteligência artificial e as milícias digitais têm ganhado força nas disputas eleitorais. Esse foi um dos seus primeiros livros?
Essa é a minha cátedra na Sorbonne e os meus escritos. É o produto do meu pós-doc, que fui aplicar na Sorbonne. Mas o que eu fico pensando sobre isso é: que coisa mais estapafúrdia. No caso do ressentimento, tem gerado opiniões para o extremismo, esse ressentimento de que você não é bem aquinhoado, que diz que quem fala de inclusão e partilha é o inimigo. Quem vende soluções fáceis para problemas gigantescos é “O” cara ou é “A” pessoa, porque não é só homem. A maioria é homem, mas há mulheres também como referências para esse tipo de gente. E são pessoas que se tornam presas muito fáceis, por exemplo, desse canto da sereia do extremismo, da violência, da misoginia monetizada. Esse monte de coisa aí que nós estamos vendo todo dia.
Quanto o Brasil tem avançado na representatividade de mulheres e, principalmente, de mulheres pretas na política? E como entende que a equidade deva ser tratada?
Quando você pega o dinheiro para as campanhas [eleitorais], você está falando da poupança pública. Não é o dinheiro que é o seu, que alguém quis dar. É a poupança do povo. Esse dinheiro tem que financiar quem? Falando de racionalidade e de lógica – aí eu estou falando de filosofia. Do ponto de vista racional, a poupança do povo tem que se voltar para quem exatamente?
Para o povo, para a representação dele.
Então, você identifica quem são as maiorias destinatárias dessa poupança pública. Esse é o primeiro argumento filosófico. O argumento constitucional está nas duas emendas: 30% dos recursos dessa “poupança” vão para as mulheres e 30% para as pessoas negras. Era, então, para nós termos, em 2024, números de eleitas mais próximos desses percentuais, correto? Mas não.
Qual o percentual de mulheres pretas eleitas em 2024 no Brasil?
São 7,5% de mulheres negras nas câmaras municipais. A eleição de 2020, na pandemia, entregou 6% de mulheres negras. É muito pouco. Quando se avalia mulheres negras no executivo (prefeituras), eram 4% [em 2020] e agora, 4,5%. Percebe-se o número aumentando, mas são muitas vices eleitas.
Isso quer dizer que o dinheiro reservado para financiar as campanhas femininas…
Está financiando a campanha dos homens, sendo elas de vice. É o subterfúgio. Não é ilegal, mas é um bypass (desvio). Observa-se, portanto, que há uma estratégia de, aparentemente, incluir e dar visibilidade à mulher – em certa medida é –, mas mantém o homem na frente. É aquela máxima machista de que “por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher”. Mas ela não está na frente. Não tem homem atrás dela.
O percentual de representatividade de homens negros segue a mesma linha?
Quando se fala de gênero, o dinheiro vai para as mulheres brancas que, em geral, estão vices dos homens. Tem também parlamentares? Tem. Mas o modo de fazer o dinheiro das mulheres chegar aos homens brancos é esse que eu estou te contando. Quando se trata dos 30% para pessoas negras, esse dinheiro vai para os homens negros. Quem é, sempre, o final da fila? A mulher negra. Sempre. [A filósofa e teórica brasileira] Sueli Carneiro fala: “A mulher negra sofre duas opressões: a de gênero e a de raça”.
Isso quer dizer que as mulheres negras perdem socialmente para os homens brancos, perdem para as mulheres brancas e perdem para os homens pretos…
Exatamente. E aí eu te pergunto: onde estão as negras do Brasil? Na cozinha, no cárcere, nos piores empregos, como mãe solo. Mas onde elas estão quando se tratam dos melhores salários? Onde elas estão no poder político? É um paradoxo difícil de acreditar.
Qual o caminho a senhora vislumbra na política, por exemplo, para tentar reverter essa situação?
Quando se fizer a aplicação do dinheiro voltada ao gênero feminino, tem de se cogitar a equidade racial. Qual é a porcentagem de mulheres negras no gênero? Tem de ter o percentual delas. Quando se falar de dinheiro para o gênero, tem de ter a cota racial dentro dos 30% das mulheres. Quando se falar do dinheiro para as pessoas negras, tem de ter a cota de gênero. Estamos trabalhando aí a teoria da Sueli Carneiro: se há dupla opressão, deve haver dupla reparação. Nós tratamos aí, portanto, de uma dupla aplicação.