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Antônio Veronese: A História de Bentinho (Capítulo 8 – Tempo de Espera)

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O outono foi chegando sem pressa, como acontece nesses rincões perdidos onde a vida desistiu de toda fantasia. Dias agora menos quentes e noites já bem mais frias… Um céu azul de cobalto contrastando com a serra magmática e, nos fins de tarde, um vento borboleteando sobre a nuvarada, bulindo com as copas do arvoredo num remexo lento, sensual, quase hipnótico… Vez por outra, o ronco d’um trovão, mas sem cair água. Só ameaça e fanfarronice…

No rio enfezado de poucas águas, que expõe a nudez da ribeira verdolenga, os reflexos cintilantes da palheta do céu e, nas horas perdidas da madrugada, o véu fantasmagórico da lua que veste de noiva a imensidão da pradaria… Bem cedinho, antes mesmo do pregão do leiteiro, o espetáculo cubista das cadeiras abandonadas sobre as calçadas depois do jantar, testemunhas silenciosas dos colóquios da noite anterior. A cidade que dorme ainda, enquanto o sol levanta preguiçoso, atrasado pelo dorso da cordilheira e a cúpula do céu, agora liberta dos caprichos do vento, impõe-se majestosa à pequenez de todos os destinos.

Duas semanas haviam se passado quando professora Catarina mandou novamente chamar Bentinho:

– Está tudo resolvido, meu pequeno. Em vinte dias, assim que começarem as férias de julho, embarcamos para o Rio de Janeiro. Fique tranquilo. Às vésperas da viagem, aviso-te; não te preocupes com nada.

O menino mal podia acreditar. Passou a contar os dias, impreterivelmente passados entre a escola matutina e as pescarias vespertinas. Comportava-se com estrita correção, temeroso de que qualquer incidente atrapalhasse os planos de Catarina. Antes de dormir, fervorosamente, pedia a Deus que tudo desse certo, que nada impedisse a realização de seu sonho tão acalentado. Aqueles vinte dias pareciam durar uma eternidade.

A Pata Pesada do Destino

Num domingo de sol, dia vinte e nove de junho, a apenas três dias da data aprazada para a viagem ao Rio, Bentinho acordou com exaltada falação na cozinha. Dela participavam Lilina, o marido Fragozinho e uma vizinha que, excitadíssima, trouxera a bombástica notícia.

A essas sessões diárias de mexericos com vizinhos Bentinho jamais prestava atenção, mas o inusitado da histeria dessa manhã o fez compreender que o assunto central da conversa era… a professora Catarina!

Com freima pulou da cama para ouvir, à entrada da cozinha, a notícia dada por Lilina com indisfarçável gozo:

– Talvez não gostes da novidade que tenho pra ti, moleque. A tua “protetora” está morre não morre lá no hospital. Deu entrada essa madrugada e, a estas horas, já deve ter batido as botas.

Então, Lilina explodiu numa gargalhada que Bentinho não esperou terminar. Saiu porta fora numa tresloucada carreira, o coração disparado querendo saltar pela boca, uma vontade enorme de chorar.

Em poucos minutos venceu os cinco quarteirões que o separavam do hospital, onde entrou, às carreiras, sendo contido com dificuldade pela enfermeira de plantão:

– Mas o que é isso, menino? Não corras aqui dentro!, disse-lhe a mulher agarrando-o pela gola da camisa.

Muito nervoso Bentinho não conseguia expressar-se, apenas balbuciou:

– Professora Catarina…

A enfermeira, então, tentou acalmá-lo, dizendo que no momento a professora não poderia receber visitas. Ordens médicas! Que ele voltasse n’outra hora, de preferência no dia seguinte.

Bentinho sentou-se, então, no banco de madeira do longo corredor e ali permaneceu, calado, enquanto corriam paradas as horas do dia. A tarde caiu sem novidades e a noite avançou morosamente nas batidas secas do velho carrilhão espetado na parede do hospital. A solitária sentinela ali permaneceu, sem receber qualquer informação que aliviasse seu sofrimento.

Na manhã do dia seguinte, a mesma enfermeira, que reassumia seu turno, surpreendeu-se ao reencontrar Bentinho, sentado ainda no mesmo lugar da noite anterior. Sensibilizada pelo sofrimento do menino, resolveu finalmente dar-lhe atenção. Bentinho, apesar da modorra da noite insone, saltou do banco assim que chamado, com o rosto denunciando a desolação hospedada em seu coração.

– Talvez hoje você possa vê-la, disse-lhe a enfermeira. Mas volte mais tarde, ressaltou.Volte depois que verei o que posso fazer. Mas agora vá para casa descansar.

Inutilmente. Bentinho retrucou que não iria embora até que pudesse ver dona Catarina e tinha em seus olhos tal convicção que a enfermeira desistiu de discutir. Mudo, sentado ainda no frio corredor de ladrilhos, ele atravessou a manhã sem nada comer, na penosa vigília que seus presságios haviam lhe imposto.

Por volta das três da tarde, permitiram-no, finalmente, visitar a professora, ainda que muito rapidamente. Ela estava prostrada no leito, atada a mangueiras e tubos que lhe administravam medicamentos, muito abatida e envelhecida em relação à última vez em que Bentinho a encontrara. Contido à porta do quarto, recebeu dela um breve sorriso e um olhar transbordando de afetos. Nada disse e Bentinho, que tanto tinha por falar, também calou-se, esforçando-se para não chorar. Ficaram assim por um instante, olhos nos olhos em silenciosa comunhão; ele aflito, ela surpreendentemente serena, como que a querer acalmá-lo. Nem a inesperada ruptura de um aneurisma, no meio da madrugada, conseguira roubar de seu olhar a candura e a mansidão.

A agonia da bondosa mulher durou ainda três dias e três noites. Bentinho sempre presente, admirável constância no momento em que até os poucos parentes se omitiam. Era tal sua dor e tamanha sua devoção que conseguira sensibilizar até Lilina, que nada fez para impedir suas idas diárias ao hospital, poupando-o, neste momento delicado, de suas ironias e boçalidades.

Então, em uma quarta-feira triste, tendo Bentinho à sua cabeceira, anjo onipresente durante sua agonia, a doce professora descansou. Cerrou os olhos como se dormisse e serenamente, assim como vivera, partiu.

Bentinho não derramou uma lágrima, ainda que fosse funda sua tristeza. Esteve a seu lado até o fim da tarde, quando a velha professora foi enterrada e foi o último a afastar-se de sua tosca sepultura.Voltou para a casa com as últimas réstias de luz do dia. Por detrás dos Martelos o sol já tombara, alumiando a serraria com seus últimos fulgores. O sibilo surdo das cigarras prenunciava bom tempo.

Bentinho desceu vagarosamente a colina do campo santo, o olhar perdido de nada ver. Não tinha vontade de chorar, ainda que sentisse imensa dor. Uma dor fundada nos grandes sofrimentos que, ainda na tenra idade de treze anos, a vida já lhe reservara. Dor pela perda da maternal professora, dor pela desperança de ir conhecer o Rio de Janeiro, dor pela carência do mais simples carinho, alimento indispensável aos pequeninos. Lembrou-se do pai, de sua voz, de seu sorriso, de sua mão forte a conduzi-lo… então, chorou sozinho no silêncio da noite que descia sobre Serrinha dos Cocos. Tivesse dinheiro e partiria sozinho, iria embora daquele lugar cheio de dolorosas recordações e de tantos sonhos perdidos.

 

(Continua na próxima semana. Veja os primeiro cinco capítulos aqui)

 

*Antonio Veronese, pintor ítalo-brasileiro, é autor de obras como “Tensão no Campo” ( Congresso Nacional); “Just Kids” (UNICEF), “Famine” (FAO, Roma) e “Save the Children” (símbolo dos 50 anos das Nações Unidas). Com 80 exposições individuais em 9 diferentes países , Veronese é considerado pela crítica francesa como “um dos dez pintores vivos que já deixaram seus rastros na história da Arte”.

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