A responsabilidade de receber o título de um dos mais elogiados pontos turísticos de Brasília também desperta o interesse sobre a história e curiosidades que deram origem ao Lago Paranoá, atualmente um dos maiores reservatórios artificiais de água da América Latina. Com 48 quilômetros quadrados de área total, uma profundidade que chega a 38 metros e cerca de oitenta quilômetros de perímetro, o cartão-postal brasiliense guarda inúmeras excentricidades, não apenas por ter sido idealizado pelo engenheiro, botânico e paisagista francês Auguste François Marie Glaziou, em 1894, durante a 2ª Comissão Cruls, mas também por ter deixado uma cidade submersa após a construção da barragem que represou as águas do Rio Paranoá.
Durante a concepção na Missão Cruls, a ideia era que o lago ajudasse a amenizar o clima da região, que desde então se sabia que passava por um longo período de estiagem, e a existência dele foi um dos fatores decisivos para a escolha do projeto urbanístico da capital. Com a construção de Brasília, Lucio Costa cumpriu a ideia e, no projeto, chamou o lago de lagoa.
A previsão e o desejo do então presidente do Brasil Juscelino Kubitschek era de que o lago estivesse cheio para a inauguração de Brasília, em 21 de abril de 1960. “Como inaugurar Brasília sem o lago tão amplamente anunciado e que, além do mais, seria a moldura líquida da cidade?”, teria dito o presidente do Brasil. Contudo, não foi tão simples assim.
A primeira vez que o lago recebeu água foi ainda em 1959, em 12 de dezembro, com a inauguração da Barragem do Paranoá. Contudo, foi apenas oito meses depois que o lago atingiu a famosa “cota mil”, a qual hoje dá o nome de um dos famosos clubes da capital.
Ainda em 1959, cerca de 16 mil operários e suas famílias habitavam a chamada Vila Amaury, uma das histórias escondidas e “levadas” pelo enchimento do Lago Paranoá. Até então provisório, o “bairro” abrigava trabalhadores e também era destino certo de quem procurava bares e diversão durante o cansativo período da construção de Brasília. Para sair do papel, a área precisaria ser desocupada, já que seria inundada pelas águas do rio e, mesmo assim, muitos operários resistiram ao chamado do governo da época.
Para se ter ideia, a vila, hoje desaparecida, estaria localizada nos declives atrás do Iate Clube de Brasília e do Grupamento de Fuzileiros Navais na Asa Norte.
Em 1959, quando o Rio Paranoá foi represado, o lago começou a se encher lentamente ao longo dos meses após a construção da barragem de contenção. Para incentivar o êxodo, as autoridades ofereceram lotes em Sobradinho, Gama e Taguatinga, mas a distância do centro da capital acabou não ajudando a convencer os moradores do acampamento provisório.
O fechamento repentino das comportas, devido ao aumento das chuvas, resultou no rápido enchimento do lago, sem tempo para remover todos os barracos da vila inundada. E, assim, conforme o lago enchia, as casas, as ruas, os bares e todas as memórias ali vividas foram levadas pelas águas.
A cidade segue submersa até os dias de hoje e atrai mergulhadores de vários cantos do Brasil que desejam descobrir os segredos e as relíquias afundadas da Vila Amaury.
Relíquias históricas
Uma das personalidades que mais contribuiu para manter viva a história da Vila Amaury, nome dado ao engenheiro que morava no local, foi o premiado fotógrafo Beto Barata. Renomado pelos cliques políticos, Beto precisou de um tempo da rotina do dia a dia nos palácios para se reconectar, não apenas com a profissão, mas também com novos desafios.
Foi então que decidiu integrar o projeto Lente Cultural, há 14 anos, que juntava duas paixões: a fotografia e o mergulho. Decidido a descobrir o que o Lago Paranoá mantinha em toda a sua extensão, Barata topou dedicar praticamente um ano de sua trajetória profissional para registrar toda a grandiosidade de nosso ponto turístico, decisão que resultou no livro Brasília Submersa, fonte de pesquisas até os dias atuais.
“Eu sou fotógrafo, tenho trinta anos de carreira. Eu entrei numa crise com a fotografia, com a cobertura política, por ficar trancado dentro de palácios. Comecei a querer uma válvula de escape. Sempre gostei de mergulho, da água, onde me sinto bem. Como brasiliense, sou admirador do Lago Paranoá, sempre achei um local maravilhoso”, conta.
O profissional lembra que, durante um dos primeiros mergulhos assistidos, procurava objetos no fundo do Lago Paranoá, mas acabou se assustando com uma boneca parecida com as de vodu, seita haitiana que invoca imagens de sacrifícios de animais, bonecos e feitiços em troca de algum desejo do autor.
Apesar do susto, Beto descobriu se tratar de uma brincadeira dos professores de mergulho, uma espécie de “batismo” para quem começa a desbravar as profundezas de nosso cartão-postal.
Com mais de cem mergulhos durante um ano em parceria com equipes treinadas e equipadas, Beto Barata conseguiu registrar um dos mais reconhecidos acervos da cidade submersa pelo Lago Paranoá.
Não há, claro, resquícios de ruínas parciais, já que os antigos moradores tiveram tempo de arrancar, por exemplo, portas, telhas, janelas e demais objetos para serem reaproveitados no novo local de moradia. Mesmo assim, corrobora Beto, há ainda paredes de tijolos submersas, um curral e até mesmo um vaso sanitário num local onde, provavelmente, seria um banheiro residencial. “Eu comecei a conversar com os mergulhadores. Sempre ouvi as lendas sobre o Lago, como o que seria um ‘cemitério de trator’, por exemplo. Após nossos papos, mergulhamos nas quatro regiões dele, e uma delas foi a Vila Amaury. Tive de aprender a mergulhar e fotografar ao mesmo tempo”, brincou.
Com uma água turva, o Lago Paranoá não é considerado um local ideal para registros subaquáticos. Beto destaca que, a partir dos dez metros de profundidade, a visibilidade é praticamente inexistente. “Contamos com diversos equipamentos na época para encontrar o que restou da Vila Amaury, incluindo brinquedos deixados pelos moradores”, afirma o artista.
Mesmo com os desafios impostos pelas águas turvas do Lago Paranoá, esses registros trazem à tona histórias e memórias submersas que continuam a fascinar e inspirar. Imagens que são uma janela para um passado oculto, revelando fragmentos de vidas e sonhos que repousam silenciosamente no fundo do lago.