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Uma odisséia Barbie: a reinvenção de um patrimônio cultural

Quando tinha mais ou menos 7 anos, ganhei o melhor presente que uma garota de mais ou menos 7 anos poderia desejar: o avião da Barbie. Aquele, com adesivos cor-de-rosa nas janelas, intercom (que funcionava!) e que com certeza despertaria máxima inveja em todas as minhas amigas — que pena ele ser grande demais para levar para a escola! Foram manhãs e tardes desvendado cada detalhe daquele objeto mágico, ajustando minhas bonecas nos assentos azul-turquesa… da Barbie sereia à Barbie fada (que ironia!), cada um daqueles pés arqueados tinha que aprender a voar. Como Cidadão Kane e seu trenó Rosebud, aquele era meu bem mais valioso. Mais puro laço com a passageira infância.

 

Para Richard Passado, o apego à boneca também tem gosto de nostalgia. “Quando tinha dois anos de idade, assisti pela primeira vez o filme Barbie Rapunzel na Globo. Sou do interior de Goiás, onde existe muito preconceito, então não podia tê-la como brinquedo”, relembra com a voz embargada. “Hoje tenho entre 250 bonecas e 150 objetos da marca, incluindo playsets, pelúcias e outros itens”: a maior coleção de seu gênero na América Latina. Vinte anos passados, Richard é um dos muitos espectadores com ingressos comprados para ver a chegada da maior boneca do mundo ao cinema.

 

 

 

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Produzido e estrelado por Margot Robbie, o longa dirigido por Greta Gerwig  tem início dentro do universo utópico de Barbieland, um reino dentro da inocência infantil que protege seus moradores das mazelas do ‘mundo real’

 

Um exercício em nostalgia sobre o enfoque do presente – e um orçamento de marketing multimilionário –, a obra estrelada por Margot Robbie é daquele tipo de peça artística que faz você coçar os olhos e reajustar a visão. “Como é possível alguém criar algo assim?”. São tantas as camadas de referências, debates políticos e deleites estéticos que não surpreende o mundo ter parado para ver a Barbie passar. 

 

De acordo com o portal britânico Flaunt Your Fashion, pesquisas por “tinta loira para cabelo” catapultaram em mais de 150% apenas horas após o trailer do filme ser divulgado, assim como os termos “estilo da Barbie” e “roupas cor-de-rosa”, que inflaram, respectivamente, 142% e 174% nas ferramentas de busca. Barbiecore é a hashtag de ouro’ internet a dentro (só no TikTok são mais de 560 milhões de publicações sob a tag) e esse jeito de vestir tão único, mas tão mutável, tornou-se um sopro de diversão num período em que a economia não ajuda, e em resposta, a moda enobrece o clássico, o perene, o calmo e o quieto. 

 

Ela é ícone fashion desde o início, e seu visual sempre foi um aspecto importante. Nos últimos anos houve um culto em torno do minimalismo e do estilo sóbrio, da cartela discreta e dos acessórios básicos. Acredito que o filme Barbie trará à tona a faceta maximalista e leve da moda, considerando que ela nunca foi básica”, explica Gabriela Lira, estilista e pesquisadora de história da moda. 

 

“Desde 1959, ano do lançamento da boneca pela Mattel na American Toy Fair, Barbie conta com uma equipe de estilistas. A primeira sendo Charlotte Johnson, que viajava para a Europa em busca de inspiração e via de perto os principais desfiles da Alta-Costura. Ao mesmo tempo que as roupas da Barbie eram influenciadas por grandes nomes da moda, seu guarda-roupa incluía, ainda, peças mais acessíveis, que faziam parte do cotidiano da mulher estadunidense”. E esse foi mais um dos feitos de Barbie: ser aspiracional enquanto é acessível, ser exclusiva enquanto é para todos.

 

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 Almanaque Barbie: além da chuva de referências na telona, versões memoráveis da boneca foram resgatadas em looks sob medida para a press tour do filme

 

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O Barbie pink invade as passarelas em looks (de cima para baixo, da esquerda para a direita), Valentino Fall 2023 Couture, Chanel Fall 2023 Couture, Blumarine Resort 2024, Giambattista Valli Fall 2023 Couture, Versace Pre-Fall 2023 e Viktor & Rolf Spring 2023 Couture 

 

Paradoxalmente, Barbie é passado, presente e futuro embrulhados numa embalagem de plástico e papelão. É um lembrete que não desbota, fruto de sua herança cinquentista moldada a partir da imagem da “mulher ideal”: cintura fina, pernas curvilíneas, cabelos fartos e sobrancelhas arqueadas — mas calma! 

 

Mesmo no auge de sua conformidade ao padrão de beleza da época, Barbie era, como brinquedo e como mulher, indiscutivelmente vanguardista. Foi a primeira boneca lançada sem intenções de aludir à maternidade, e em 1985, a Barbie CEO chegou ao topo da cadeia alimentar econômica. Barbie Presidente, Barbie Astronauta, Barbie Faz-Tudo-E-Mais-Um-Pouco… não, ela nunca foi desocupada. Longe do ideal da ‘boneca de porcelana’, Barbie era feita de petróleo e força de vontade. Uma resposta ao presente, às tendências, às mudanças. 

 

Quando o boom do milênio trouxe a popularização da Internet, Barbie conquistou na world wide web com sites, jogos e brinquedos digitais. Quando seus 83cm de quadril, 45cm de cintura e 91cm de busto foram determinados como irreais e retrógrados, Barbie mostrou que carisma vem em todas as formas e lançou a linha Fashionista, que chegou às gôndolas de brinquedos em 2016 apresentando a primeira Barbie gorda. Em meados de 1960, se Martin Luther King e Malcom X falavam, Mattel escutava: assim, no final da década, a primeira boneca preta do universo Barbie veio a ser. Com cabelos curtos e um look psicodélico, Christie andou para que a Barbie Brooklyn pudesse correr.

 

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“Dentro da marca Barbie hoje temos diversas representações: bonecas PCD, bonecas de variadas etnias, bonecas com diferentes identificações de gênero… um catálogo que está em dia, mas que merece crescer ainda mais. Infelizmente, esse avanço não se reflete nas animações da franquia. Gostaria de ver personagens com corpos maiores, personagens negros retintos”, declara Richard.

 

Com graça e sem alvoroço, Barbie moldou muitos ‘hojes’ por acreditar no seu próprio ‘amanhã’. “Esse filme irá fazer um recorte do mundo como está e, através dessa lupa, se tornar arte. A Barbie não apenas evoluiu junto com as mulheres e junto com o mundo, mas ela esteve sempre um passo à frente, sempre foi ousada. Por mais que ela estivesse a par das tendências, ela consegue andar mais rápido que o compasso”, profetiza o aficionado. Como a cena do trailer que reproduz o clássico frame de 2001: Uma Odisséia no Espaço, todo tempo ‘Antes de Barbie’ é um tempo pré-histórico.

 

Onipresente, onisciente, e onipotente, Barbie traça numerosos paralelos entre o cristianismo e o criacionismo. Ela anda sobre a água, ela opera milages… é Jesus e Adão ao mesmo tempo: a Primeira Mulher, capaz de tudo.

E se Barbie é quem veio primeiro, atire a primeira costela e faça dela o Ken. Feito para ser nada além de um acessório para a ‘garota que tem tudo’, o boneco tem identidade alguma além de ser “o namorado perfeito”. Não tem casa, não tem ocupação, não tem preocupações que vão além do que diz respeito à parceira. Uma completa reversão dos valores de gênero dentro da sociedade “de carne e osso”, orquestrada de modo tão orgânico que passou-se despercebida por mais de 60 anos, sem questionamento. 

 

Preservando a roupagem do feminino aspiracional de Barbie, foi possível agregar a ela um acessório novo para as mulheres, mas que coube tão bem: a independência. “Há um estigma de que a moda em si e as pessoas que a acompanham são fúteis e materialistas. Esse projeto vem para romper com isso”, dispara Lira. “É um filme feito por mulheres, para mulheres”.

 

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Na trama, Barbie e Ken viajam para o ‘Mundo Real’ numa jornada de autodescobrimento e realização. Ela, rumo a compreender as verdades do universo, ele, buscando entender quem é e o que representa fora de seu relacionamento (Foto: Divulgação)

 

Acessórios, aliás, são parte intrínseca da história e essência de Barbie. Intuitivamente antenada às tendências de moda e comportamento, sempre caminhou com facilidade por uma das mais ardilosas tarefas de estilo: manter-se a par das demandas do mundo sem perder sua essência pessoal — e se me perguntar, digo que esse é o truque que a mantém sempre jovem. 

 

“Barbie passou por diversas transformações de estilo e fisionomia ao longo dos anos, com o intuito de se encaixar nos padrões de moda e beleza da época vigente. Suas roupas em miniatura contam a própria história da moda, incorporando as modelagens preferidas de uma década, cores, estampas, acessórios do momento… A imagem da Barbie sempre esteve atrelada ao mundo da moda, e as parcerias entre ela e Karl Lagerfeld (2014), Moschino (2015) e mais recentemente, Balmain (2022), provam isso”, destaca a especialista. 

 

“A estilista responsável pelo figurino do filme é a experiente Jacqueline Durran, vencedora de duas estatuetas de Melhor Figurino no Oscar, respectivamente por Anna Karenina e Adoráveis Mulheres. Apesar dos seus principais projetos terem sido figurinos históricos, ela tem no currículo, ainda, o filme A Bela e A Fera, logo a linguagem fantástica com apelo infanto-juvenil certamente não foi uma total novidade para ela”, garante.

 

Com sets que fazem referência aos brinquedos de maior sucesso das linhas Barbie para Mattel, a obra cinematográfica apresenta um colorido lúdico, com overdose de tons de rosa, uma paleta de cores saturada, flertes com silhuetas  vintage e quase 50 trocas de roupa

 

Mas para Richard, trabalho não está completo sem um aceno ao legado da boneca nos anos 2000. “Além dessas referências, eu gostaria de ver, também, elementos dos outros filmes da Barbie! Foram mais de 40 produções e muitos jovens millennials e gen z se apaixonaram por essa Barbie dos filmes”, confere. 

 

“Acredito que seria uma oportunidade de mexer com a nostalgia do público que acompanha a boneca desde a virada do milênio, abrindo possibilidade, talvez, para remakes em live action dos sucessos de animação que marcaram a época”.  

 

Em entrevista ao portal Architectural Digest, Margot Robbie apresenta tour da Barbie Dreamhouse e conta detalhes sobre a produção do set

 

Em toda a sua essência e trajetória, Barbie é símbolo de ambição. É o tapa com luvas de pelica, é o jeito educadíssimo de completar a frase  “lugar de mulher é na..“. É a revolução do zeitgeist feita sem interromper o status quo, é esperança, é mente aberta, é a prova de que mudanças não precisam, necessariamente, ser agressivas.

 

Na busca por uma sociedade mais justa, é fácil se perder no grito, na birra, na sinfonia de choros e dores de quem prefere reclamar na internet a reavaliar o próprio comportamento. Dizem por aí que o mundo está chato: é verdade e é mentira. Sim, o palco promovido nas redes sociais faz com que ‘ser ouvido’ se torne prioridade número zero, e o papel de vítima, o mais desejado da peça. Debates complexos ficam rasos, ideias extensas, comprimidas em poucos segundos… fica difícil conversar.

 

Mas como qualquer criança brincando de casinha, é preciso cair para aprender. Calcular errado a força do golpe, bater no coleguinha e machucar sem querer. Quem nunca? Às vezes, o “falar alto demais” é parte do processo de encontrar sua voz. E se nem Barbie, do alto de toda a sua sabedoria e elegância, sabe onde se encaixa nesse mundo de plástico, quem somos nós para querer saber?  “Seja quem você quiser ser”, foi o que ela sempre nos disse — e, para quem ainda não decidiu, o conselho é valioso até hoje.  

 

 

 

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