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Antônio Veronese: “A história de Bentinho”

Era uma vez, na pequenina cidade de Serrinha dos Cocos, um menino de doze anos chamado Bentinho, mestre nas artes da pescaria
Foto: Unsplash

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O certo é jogar o anzol no olho do remoinho e a favor da jusante, lá onde o rio lambe a laje funda e corcoveia, cumprindo seu destino. Depois, há que ter paciência e tino pois que o mandi morde duro e seco e a mão deve estar atenta. 

Carece dizer que depois de fisgado é que o bicho exige ainda maior atenção… há que se manter a linha tesa e o olhar atento, senão o danado gira o corpo de malabarista e livra o beiço do aço, escorregando feito quiabo pela barranca musguenta do rio, cigano das profundezas que dá de ombros pra nunca mais.

Uma vez o encapetado fora da água é que as coisas ainda ficam “mais pior”. Menino de cidade grande, desavisado desses ofícios, vai logo metendo a mão onde não deve e o ferrão, de fisga dupla e desabusada, entra fundo nas carnes do desinfeliz. Aí é um sofrimento dos infernos: febre, calafrio, enjoo e, pior que tudo, a íngua-de-sovaco, que no interior a gente chama mesmo é de bubão.  

Para evitar tanto sofrimento, coisa que qualquer capiauzinho de beira de rio sabe, é preciso manter o “coisa-ruim” esganado sob a sola da botina até que se dê por vencido; depois, mete-se-lhe o polegar e o indicador da mão canhota nas entranhas da guelra escancarada pela asfixia, enquanto a destra livra, sem pressa, a boca do anzol. 

 

Era uma vez

Era uma vez, na pequenina cidade de Serrinha dos Cocos, um menino de doze anos chamado Bentinho, mestre nas artes da pescaria. Órfão de mãe, morta de parto, Bentinho, apesar de tudo, crescera livre e feliz.  

No entanto, naquela manhã de domingo de lestada forte e céu de cirros como algodão doce, um capricho do destino iria mudar para sempre sua vida. Foi assim que essa pequena história começou!  

Voltando da barranca do rio depois de “matar” meia dúzia de mandis e um minguado papa-terra-de-cara-amarela, Bentinho percebeu movimento inusitado à frente de sua casa. Podia identificar, mesmo à distância, a parentada reunida na varanda da casa, coisa rara em família de turras e desavenças.  

Foi então que, entre soluços e histeria, recebeu a notícia de que seu pai, o bom Antonio Bento de Jesus, morrera há cerca de uma hora: infarto fulminante. 

O pobre marceneiro, pois que esse era seu ofício, era pessoa querida e respeitada na cidade. Eram de sua lavra as marqueterias e volutas que adornavam o mobiliário das melhores casas da região. Além disso, fora pai extremoso, amigo, presente, companheiro de longas conversas e fiador de todos os sonhos. 

Na segunda-feira de chuva fina e afiado sudoeste, Bentinho enterrou o pai no pequeno cemitério no alto do cerro, ao sul da cidade. Coisa assim definitiva e inesperada como morte de intestado.

 

Naquele tempo

Serrinha dos Cocos era uma bucólica cidadezinha perdida numa dobra da serra dos Martelos, fim dos mundos, lugar de nunca se ir… Isso num tempo em que nem televisão havia e que, por isso mesmo, ser criança era muito mais gostoso do que hoje em dia.

Era um tempo de se distrair a preguiça dos dias com jogos e folguedos, tempo de alçar pipa nos céus, de cabra-cega e pula-carniça, de esconde-cinta e esconde-esconde, de passa-anel, correio elegante, de rodar o pião e de pular a “amarelina” riscada no chão… tempo de levar as cadeiras para as calçadas depois do jantar pra jogar conversa fora e sentir a fresca da noite sob o céu faiscando de estrelas e mistérios.

Tempo em que se acreditava ainda em histórias de assombração e nos fantasmas dos sobrados da Ladeira da Boa Morte, sobrados que no passado teriam acoutado escravos fugidios e onde, juravam de mãos juntas os mais velhos, ainda se podia escutar, nas horas altas da noite, o ruído de grilhetas dos mortos sobre o frio azulejado português.

Mas era também um tempo de saci-pererê e de suas fandangueanças noturnas na intimidade das cavalariças a fazer carapinhas das crinas dos cavalos e de curupira, com seus rastros invertidos impressos na lama gorda das invernadas como um soturno presságio.

Tempo de caipora, esse primo daquele, (coisa ruim cruz credo!), capaz de trazer mal  agouro e morte a quem, por desfortuna, cruzasse seu caminho.

Tempo de mula-sem-cabeça, com seu trote seco e bizarra silhueta, a assustar os casais de namorados atraídos pela privacidade das pradarias noturnas, e de Iara mãe das águas, a banhar-se nua nos rios espelhados em noite de lua cheia.

Mas era também um tempo de inocências e fé; de festa da padroeira com os altares iluminados pelo fulgor das velas incandescentes; do cheiro de cera queimada e da névoa perfumada do defumador de incenso, memórias olfativas indeléveis da infância dos meninos.

Tempo do coro das beatas com seus véus diáfanos, reunidas em tardes de novena e na vigília do lausperene, a resmungar sua chorosa ladainha: “Aaave, Aaave, Ave Maria…

Tempo de procissão de Corpus Christi, com as ruelas adornadas de luxuriante tapeçaria, exalando aromas de flores, serragem e pó de café.

Tempo de quermesse, com as raparigas desfilando suas chitas coloridas e seus olhares de sedução, a extasiar a plateia de apaixonamos meninos futuros maridos… tempo de dançar o catira sob a luz da lua, com as botas de couro da peãozada marcando o compasso e levantando a poeira vermelha da terra cafeeira.

Tempo de ter festa de São João, com busca-pé e foguetório nas torres da matriz e do céu iluminado de incontáveis balões nas noites frias de julho. Tempo das modas de viola e serenatas e de acompanhar, aos pinotes, a bandinha ladeira abaixo rumo ao Largo da Santa Cruz.

Tempo de tomar banho de rio, de ir ao campo apanhar guabiroba madura, de armar arapuca pra apanhar sanhaço e de subir na cumeeira do telhado em noite de lua cheia, só pra ver a cidade todinha pintada de azul.

 

O orfão Bentinho

Parente é coisa complicada. Apesar  da choradeira pelo defunto, trataram logo de esquivar-se das responsabilidades: ficar com o órfão Bentinho ninguém podia. Este por ter a sogra doente, aquele por não ter espaço em casa, o outro por questões financeiras… o fato é que, de uma hora para outra, viu-se o menino na iminência de, aos doze anos de idade, ter que tocar sozinho a casa e a vida; coisa inconcebível.

Depois de muita confusão e palavrório, e graças à módica soma recolhida junto a parentes e amigos, acomodou se o menino, provisoriamente como fizeram questão de ressaltar, em casa de vizinhos, os “Fragoso”.  

A escolha não poderia ser pior! A desventurada família habitava um lúgubre e imundo sobrado infestado de parasitas, atravessando os dias a gotejar humores e desavenças agravados por uma penúria de fazer dó.  

Constituía-se do tísico e esgrouviado Fragosinho, alto e macérrimo, agro, afásico e pusilânime, há trinta anos funcionário do Posto de Puericultura; de sua esposa Lilina, obesa de desgrenhados cabelos de fogo, famosa por sua eructação em público e por inconfundível parafonia; e de três sebáceas crianças, insuperáveis nos “maus modos” e na fealdade.  

A doença dos peitos, que há anos atazanava Fragosinho , roubara-lhe todos os apetites da vida e a mulher, fosse pela irascibilidade do seu temperamento ou pela elefantíase de seu físico, mantinha a casa com pulso de ferro e poderes absolutos. 

Recebido muito a contragosto neste ambiente hostil, Bentinho, no curso de poucas semanas, viu a vida transformar-se drasticamente. Mal instalado em um buraco da despensa, onde colocou-se um fino colchão sobre o piso frio de vermelhão, o menino passou a sofrer toda sorte de hostilidades, vivendo à matroca como um bicho acuado.  

Emagrecera a olhos vistos, não somente em decorrência da tristeza instalada em seu peito pela perda inesperada do pai, mas especialmente pela inapetência provocada pela comida de Lilina, um composto de imundices e sensaboria. 

Depois de quase três meses neste inferno, Bentinho lembrou-se do comendador Álvaro D’Almeida Gamões, abastado português residente na capital do Rio de Janeiro. Como pôde tê-lo esquecido?! O Comendador e sua esposa eram muito queridos por seu pai. Em correspondência mantida por anos a fio, o luso sempre reiterara sua gratidão pela ajuda recebida de Antonio Bento quando aqui aportara procedente de Lisboa sem um tostão no bolso. Nesta fase de agruras de emigrante, quando se caldea o espírito na provação do recomeço, fora o pai de Bentinho o único amigo, chegando a emprestar-lhe dinheiro e a ajudá-lo a conseguir o primeiro emprego no Rio de Janeiro.  

O tempo passou, com ele prosperou o português e, como ao dinheiro sempre acompanham os títulos honoríficos, tornou-se Comendador. Ainda assim, jamais deixara de sentir pelo pai de Bentinho profundo reconhecimento e sincera amizade. Quando se casou, Antonio Bento fez do casal de portugueses os padrinhos, mudando-se em seguida para a pequena Serrinha, em busca de novos horizontes. Mas a distância não arrefecera a amizade, mantida por copiosa correspondência, em que o português sempre fizera questão de reiterar sua eterna gratidão. 

Talvez, imaginou Bentinho com seus botões, pudesse ir morar no Rio com o compadre de seus pais e, só de pensar nesta possibilidade, iluminou-se no rosto do menino um sorriso de esperança. Será que ele sabe que meu pai morreu, perguntou-se Bentinho? 

 

Continua na próxima semana.

 

*Antonio Veronese é um pintor ítalo-brasileiro que se divide entre o Brasil e a França. É autor de obras como ‘Tensão no Campo’ ( Congresso Nacional); ‘Famine’ (FAO, Roma) e ‘Save the Children’ (símbolo dos 50 anos das Nações Unidas). Com mais de 70 exposições individuais em todo o mundo, Veronese é considerado pela crítica francesa como “um dos dez pintores vivos que já deixaram seus rastros na história da Arte”.