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Na casa dos Fragoso, Bentinho não queria mais ficar. No início ainda tentou aproximar-se de sua nova “família”. Mas suas iniciativas eram sempre frustradas pela indiferença de Fragosinho, pela truculência das crianças e pelo constante mal humor de Lilina.
Logo ganhou o apelido de magricela, o que realmente era se comparado à obesidade das crianças da casa. Assustado com a inospitalidade crescente, Bentinho tentou chamar a atenção de Fragosinho para a existência dos portugueses, residentes no Rio de Janeiro. Inutilmente, falava com as paredes. Tanto insistiu, no entanto, que acabou por despertar a curiosidade de Lilina… afinal, o assunto poderia interessar.
-Que comendador é esse, moleque? perguntou-lhe a patusca entre dentes.
Timidamente Bentinho começou a falar do português e sua esposa, amigos velhos de seu pai, que se gostavam muito, que eram compadres, que moravam na capital.
-E daí? insistiu impaciente a mulher, o que é que eu tenho com isso?
-Daí, disse-lhe Bentinho com a voz quase inaudível, se vocês não me querem mais aqui eu poderia ir morar lá com eles…
A mulher arregalou os olhos:
-Morar lá com eles? Será que eles te aceitam?, perguntou subitamente interessada.
-Eu não sei, respondeu o menino. Mas eles gostavam muito do meu pai. Sabe, meu pai uma vez ajudou eles.
-E você sabe o endereço deles?, interrompeu bruscamente a mulher.
A carta
A presença de Bentinho era tão indesejada pelos Fragoso que bastou que se revelasse a existência do Comendador para a ladina Lilina bosquejar às pressas uma carta dando conhecimento da precária situação do menino. Enfatizava nela as dificuldades financeiras; a falta de espaço para acomodar mais uma criança em casa, a doença de Fragosinho.
Enfim, encerrava a missiva dizendo esperar do Comendador, com grande ansiedade, uma rápida solução para o problema. Depois, sequestraram da algibeira de um carcomido casaco de Bentinho uma folha de jornal enrodilhada d’um puído barbante e prenhe de velhas cartas do comendador para seu pai, de onde pinçaram seu endereço no Rio.
A carta, despachada às pressas por Fragosinho, levaria, segundo cálculos precisos do oficial do correio, cinco dias para chegar ao Rio.
Transcorreram-se os cinco dias previstos; mais cinco suficientes para o retorno de eventual resposta; mais uma semana… outra ainda e… nada! Foi grande a decepção. O que teria acontecido? Teria o lusitano recebido a missiva? Na hipótese afirmativa, teria ele virado as costas para o problema? Estaria ele ainda vivo?
Tempo de espera
O tempo ameniza dores e arrefece amores. Por que seria diferente desta vez? Por que esperar que o distante amigo português, depois de tanto tempo transcorrido, fosse ainda comover-se com a situação do pequeno órfão na perdida Serrinha dos Cocos? A situação de Bentinho no seio dos Fragoso piorava à medida em que o cumular dos dias desacreditava qualquer resposta vinda da capital.
Privado de qualquer afeto e da mínima atenção desde o início, começava agora a ser alvo de más-vontades crescentes, de distratos e proibições descabidas, de provocações e grosserias. Os fedelhos da casa, respaldados pela fiança da mãe, agravavam as agressões e humilhações cotidianas, fazendo da vida do nosso bom Bentinho um inferno sem fim. Sem contar a discriminação na partilha da comida, que sempre aquinhoava a prole de Lilina com o melhor, restando para ele, mero intruso, somente as sobras das panelas; o direito ao banho restrito a uma ou duas vezes por semana, sempre quando a água do chuveiro já estivesse fria; as roupas raramente lavadas e jamais passadas.
Um fim de semana, para piorar as coisas, Bentinho foi acusado, por um dos roliços fedelhos, de lhe ter roubado uma bolinha de gude. Disse este ainda mais: que por birra, Bentinho a teria atirado pela janela no “jardim” da casa, um baldio capinzal cheio de cobras e lagartos.
Lilina não exitou por um instante: obrigou Bentinho a ir procurar a pequena esfera de vidro verde perdida no copioso capim. Depois de mais de uma hora sob um sol dos infernos, o fedelho acusador, zombeteiro, retira de seu próprio bolso o objeto do alegado furto. Foi uma grande troça familiar. Antes que repreender o filho, Lilina adorou a “brincadeira” de mal gosto e juntou-se ao coro na gargalhada geral. A situação ficava a cada dia mais insuportável.
Uma noite, acordado do sono justo que dormem os meninos, Bentinho pôde ouvir uma ríspida discussão na qual a dona da casa exigia, ante relutante reação humanitária do marido, que este se livrasse do intruso a qualquer preço, despejando-o compulsoriamente, se preciso fosse, na casa de algum parente.
-Afinal, concluía ela, se na hora da herança chamam-se os herdeiros, que se faça o mesmo na partilha das obrigações.
Deitado em sua caminha improvisada e fingindo dormir, Bentinho a tudo ouviu em silêncio. Na fria despensa onde dormia, passou o resto da noite com os olhos fixos nos filetes do luar que escapavam por entre as frestas das telhas portuguesas, projetando-se como laser sobre as prateleiras vazias… Lembrou-se então do pai morto há um mês e, por fim, desatou a chorar; um choro fundo e solitário, sufocando seus soluços para não ser ouvido pelos donos da casa.
(continua na semana que vem)
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